domingo, 21 de agosto de 2016

Liberdade

"Quem criou sua própria realidade?" Muito raramente uma pessoa, que acompanha meus textos, me traz pontualmente uma questão. E ontem foi "quem criou sua realidade?", assim como está na foto.

Imagino esta pergunta, diante desta minha amiga, e o que a fez pensar sobre ela, e o que a pergunta em si a fez pensar sobre si mesma. "Quem criou sua realidade?"

Existe a história da Esfinge que parece algo semelhante ao desafio de quem somos, o que as coisas são e todo enigma em tudo em nossas vidas. Acalmar-se nos enigmas da vida demanda muita meditação, paz interior e sabedoria, porque a Esfinge - como qualquer Esfinge - era um monstro que devorava quem não sabia responder o enigma proposto por ela. Perguntas como "quem criou sua realidade?" são enigmas de fases de nossas vidas dos monstros dentro de nós mesmos querendo nos devorar, de dentro para fora, caso fiquemos sem respostas. Esta minha amiga deve ter sentido o poder assombroso da Esfinge dentro dela mesma, da mesma forma que eu mesmo o sinto, e creio que tantos outros sentem. E quem criou a minha realidade será a minha possível resposta para o meu próprio enigma, e preciso filosofar para a minha resposta. E, claro, de um modo um pouco poético.

Temos uma realidade inicial em nossas vidas. São os instintos. Forças biológicas que fazem as espécies sobreviverem e se perpetuarem. Dos filhores de pássaros aos de tartarugas marinhas, a sobrevivência inicial é o oculto obedecido cegamente pelo indivíduo. A pequena tartaruga vai para a água e o passarinho não sei para onde, mas vai para o ar.

Após os instintos, temos os sentidos, que são os cinco (olfato, tato, odor, audição, visão). Olhando para nós, humanos, no espelho de nossas memórias depois de envelhecidas, sabemos que os sentidos constroem o primeiro passo do frio, do azedo, do ruído, do opaco, da lavanda, para a grande maioria das espécies.

Após os sentidos, entramos no universo própria e essencialmente humano, "demasiadamente humano", e criamos os conceitos: do frio em oposição ao calor, do azedo em oposição ao salgado, da lavanda em oposição ao Bleu de Chanel.

Por fim, em nosso cérebro, os conceitos geram ideias e as ideias dentro de nossas cabeças geram a nossa realidade, ou as nossas realidades vividas e imaginadas. "Quem criou a sua realidade?" Parte da resposta está claramente dentro de nós mesmos. E esta resposta somente tem validade e existência diante de outra parte: qual a outra realidade fora de nós mesmos que nos cria sem que nos demos conta de que ela existia?

A pergunta agora é um pouco diferente. Alguém me perguntou: "Quem criou a sua realidade?", e dentro de mim meus instintos, meus sentidos, meus conceitos e ideias formaram parte da minha realidade. A outra questão que formulo é uma auto-reflexão: "Quem criou a minha realidade?" Eu pergunto a mim mesmo e espero as respostas agora fora de mim. Meus pai e minha mãe? A família onde nasci? A casa, rua, bairro e cidade onde morei? O idioma que aprendi a falar? As situações que eu vivi e as que eu deixei de viver? Os riscos a que me submeti e os riscos que evitei? As escolas onde estudei e os amigos e desafetos que tive? As oportunidades que não tive, mas criei, e as oportunidades que eu tive e as rejeitei? As palavras que mais ouvi do que falei, ou as falas que mais fiz do que escutei? As regras que obedeci e as punições injustas que levei? As injustiças que eu inconsciente ou conscientemente cometi e mesmo assim persisti acreditando que o errado não era eu? Os milhares de sims e nãos que recebi e dei? E dezenas de milhares de detalhes que não estavam em mim, justamente porque neste mundo raramente vivemos sozinho e que fazemos parte da totalidade do que somos e incrivelmente desconhecemos em nome do esquecimento. Por mais lágrimas que temos ou sorrisos que damos, os mais verdadeiros sempre são os presentes neste momento. Todo sofrimento e alegria é presente.

"Quem criou sua realidade?" e "quem criou minha realidade?" são movimentos que se complementam para uma resposta mais clara: nossos instintos, sentidos, ideias somentos a todas experiências sociais fora da gente com outras pessoas e meios. Se temos uma realidade, temos duas verdades sobre ela que nos fazem mais conscientes das forças internas que nos governam e das forças externas a que somos submetidos... e se pensa que a resposta terminou, uma última palavra vem em seguida.

Não importa. Definitivamente não importa muito quem criou a minha realidade, o que criou a minha realidade, onde, por quê e como. Importa muito o que somos e principalmente a consciência do que efetivamente queremos ser. Sou escritor por insistência; hoje sou produtor cultural pelas circunstâncias; sou professor pelo acaso; sou pai por amor; sou filho de inúmeras facetas: da rebeldia ao orgulho. Não importa quem criou minha realidade. Importa a consciência "dialética" que tenho dela. Importa sim qual realidade queremos criar em nossas vidas a partir do momento em que temos consciência de que temos uma vida real, "desconhecidamente real". As perguntas surgirão como monstros em forma de dúvidas para nos destruir, certo? Inclusive perguntas na boca das pessoas: "por quê?", "para quê?", "qual necessidade?", "você acha que vai conseguir?", "acha que é fácil?". Estes monstros.

Hoje é fácil encontrar uma resposta consciente que valha o preço da mudança. Temos mais facilmente consciência de que a vida caminha e que praticamente tudo caminha junto. Caminhamos juntos no mesmo tempo, ainda que em espaços diferentes. Todas as vidas fazem parte de algo chamado eternidade, por menor que seja para o infinito a porção de cada um de nós nele. Existimos. Sou otimista em não desistir e procurar fazer. Fazer de nossas vidas a realidade que queremos para nós. Talvez uma realidade incompleta porque dependemos de outras pessoas que amamos, mas que devem ficar na realidade delas para que possamos criar parte da nossa. Podemos ter uma vida a mais completa possível ao depender de nós mesmos. E como término, indico a leitura dos versos do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa em que alguns versos dizem assim:

"Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro."

Creio na vida que cabe na arte. E que a arte tem mais realidade do que imaginamos...

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Diálogo

- Você acha mesmo que o ser humano, depois que tem experiências como eu as tive em um relacionamento de prisão, ele sentirá falta de outro relacionamento de prisão?

- Pensei em responser um monte de coisas.

- Pois é. Mas você sabe a minha resposta.

- Sei. E porque você está me perguntando isso, se você sabe que eu já sei sua resposta?

- Porque eu queria que já soubesse que eu sei que você sabe a minha resposta.

- Vá se lascar...