segunda-feira, 20 de abril de 2020

O MILAGRE NA CELA SETE


O Milagre na Cela 7 me lembrou um pouco a parte final do filme Forrest Gump. Não vou dar detalhes. Vou me prender às imagens do primeiro, porque qualquer história reflete nossa imaginação particular, pessoal, intransferível. Não interferimos diretamente no que um artista faz, mas somos nós que caminhamos pela arte com nossos passos pessoais que dizem respeito a nós. Se o artista nos engrandece, o contrário é igualmente verdadeiro. As pessoas criam suas imagens da arte por meio de suas percepções. Em parte, O Milagre na Cela Sete me evocou A Vida é Bela também. Então, podemos falar de um padrão, de um arquétipo, e como toda tríade é uma estrutura, esses três filmes dialogam entre si. Há o mundo dos adultos em todos eles, há o mundo das crianças em todos eles. Inverter essa lógica impacta nossa percepção - aquela mesma percepção através da qual construímos nossas histórias. É bom lembrar que nossas sensações fazem parte do que construímos de qualquer saber. Quando sabemos genuinamente, podemos afirmar que sentimos primeiramente pelas sensações, que estimulam nossos sentidos, que constroem as futuras ricas associações abstratas. Uma mente abstrata está acima um grau da mente concreta. Em O Milagre da Cela Sete a função da abstração humana sugere um estudo à parte, mais especificamente no momento da criança escondida embaixo da cama. Então, O Milagre da Cela Sete está em qual categoria predominante? Sentir, perceber, abstrair? É da natureza filosófica humana (metafísica) esse outro tripé, e por esse motivo arquetípica. Se até pouco tempo atrás os estudos psicológicos e psiquiatras eram reflexo do que dizia o comportamento humano, hoje o comportamento humano tem  alguma raiz neurológica certa e já mapeada. Por esse motivo, o que não pode faltar em muitas das reflexões de comportamento humano nos dias de hoje são as descobertas da engenheria do cérebro. Como o cérebro funciona? Esse mistério tem sido revelado com tanta força a ponto de especular-se que os mistérios são respostas simples, ainda que ricamente sedutoras saber que no ser humano a materia milagrosamente "pensa" sobre si mesma! Já é mais do que comprovado que toda resposta sensitiva está no cérebro - não há um vácuo onde o sentido habita. Nesse sentido, a capacidade e a intensidade de sentir não teriam outro berço, a não ser o neuronal, o cortical, e outro dilema surge no filme O Milagre da Cela Sete, que é natureza do inato (nature) e a natureza do adquirido (nurture). Parece viagem, certo? Mas a lógica está na construção do texto. Se iniciasse afirmando que tudo se resume às nossas percepções das sensações pelo sistema nervoso periférico e central, não seria uma reflexão sobre o filme. É do filme que se fala, e filme é arte e a arte busca expandir, transcender, revelar o oculto, o subentendido, como elebora António Damásio, retórica e precisamente, a questão "como os seres humanos vieram a ser, ao mesmo tempo, sofredores, mendigos, celebradores da alegria, filantropos, artistas e cientistas, santos e criminosos, senhores benevolentes do planeta e monstros decididos a destruí-lo? A resposta a essa questão certamente demanda contribuições de historiadores e sociólogos, bem como de artistas, cuja sensibilidade costuma intuir os padrões ocultos do drama humano; além disso, requer contribuições de vários ramos da biologia." Eu destaco o trecho "artista, cuja sensibilidade costuma intuir os padrões do drama humano". Não apenas O Milagre da Cela Sete, nem o filme À Espera de um Milagre, nem a prisão imaginativa de Alice no País das Maravilhas, mas toda arte tenta abrir caminhos rumo à sua realização na mente das pessoas. Já as lágrimas são pessoais, reflexo de nossas dúbias fraquezas e fortalezas. Eu não chorei no filme, e meus filhos sabem que choro muito facilmente. Não é raro minha filha falar "olha lá, papai vai chorar" quando testemunho algo que ela sabe tocante para mim. Talvez, para terminar, nossa realidade tem nos anestesiado da arte. Essa nova realidade de confinamento. O luto coletivo dessa guerra silenciosa por que passamos é estranho. Não ouvimos movimentação de tropas, nem bombas, nem aviões e tiros, que seriam objetos concretos para nossa angústia e reais lágrimas. Todos os psicólogos sabem que sensação e comportamento sem objeto é neurose, esquizofrenia, síndrome do pânico etc., e as consequências naturais para o indivíduo são enormes. As lágrimas na arte é um objeto catártico. Por fim, essencialmente pela catarse, vale a pena ver O Milagre da Cela Sete. Se chorar, melhor ainda, e sei que você vai chorar pela narrativa simples, bonita, direta, emocionante. Chorar hoje alivia e nos justifica. Mas voltaremos a sorrir, porque "fico com a pureza das respostas das crianças; é a vida, e é bonita, é bonita."

Flavio Notaroberto

terça-feira, 14 de abril de 2020

conto maos dadas

(Escrito agora)

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário enconstar na dele, por uma, duas, tres vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via o quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor não se viver o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizasos, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é dolososo. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -