sábado, 6 de março de 2021

Beatriz e Fátima

 - Minha mãe disse para eu vir para escola, porque era para eu comer. É verdade, professora?

Sentada na cadeira, cara invertida, de pouquíssimos amigos, a professora Fátima usava máscara preta. A aluna em seguida meteu os olhos por entre os braços cruzados na carteira para chorar bem silenciosamente. Fátima ouviu e quase respondeu que estavam na escola "para todo mundo morrer de Covid!", de tão indignada pela desfaçatez e desumanidade de ter de ir trabalhar no pior momento. Ainda mais ela que já foi infectada. A sala vazia. Dos quase vinte e poucos alunos, somente oito presentes, espalhados, e todos em profundo silêncio, de máscara, obedientes. Ao menos fossem sempre quietos assim, pensou Fátima, dar aulas não seria doentio. A aluna insistia com os olhos entre os seus dois braços, chorando bem suavemente. Ela estava triste por algo, que ainda não incomodava a professora; esconder o olhar vermelho de tristeza era uma forma de sinalizar que não queria estar triste. Uma criança de onze anos entende ainda pouco de emoções humanas, nem procura entender para acomodar o que não é possível deixar de sentir. Apenas sente.

- Sim, disse a professora Fátima, vocês estão todos aqui para comer!, e Beatriz escondeu mais ainda a cabeça, agora incluindo suas orelhas.

A professora não levantou da cadeira, em momento algum, desde que havia entrado, há uns quinze minutos. Mexia em papeis e olhava as mensagens no grupo de professores, com a palavra de ordem Greve Já! O dia , por sua vez, até que feliz, alegre, sorridente com sol, vento fresco, nuvens brancas; o barulho era pouco, bem pouco, para uma cidade como São Paulo, para o bairro como Cidade Tiradentes, no extremo leste da zona leste. Tudo praticamente fechado, mas escolas não! O dia lá fora livre, e a professora presa naquela sala, oito alunos, servindo de quase babá, com risco para ela, sua família, dos alunos e seus familiares.

- O que foi, Beatriz? Por que chora aí?

A menina levantou parte do olhar, abaixou um pouco a máscara e em poucas palavras repetiu:

- Minha mãe falou que eu tinha que vir para a escola para comer.

Enfiou de novo o olhar perdido de sua inocência entre os braços, um pouco mais conformada.

- Por que para comer? - quis saber Fátima.

- Minha mãe só disse que eu tinha que vir para escola para comer, respondeu a menina, sem tirar a cabeça dos braços, e o som saindo abafado.

Mensagens no grupo dos professores pipocavam em protestos Greve Já!. Fátima lia e se alimentava daquelas convicções. A presença da Beatriz, uma aluna tão boa, dedicada, simples, humilde, olhar e sorriso sempre meigos e acolhedores, não faltava, que fazia lição, prestava atenção, participava cheia de respeito, aquela presença de Beatriz foi diminuindo o incômodo de Fátima de estar lá. Talvez porque as lágrimas de Beatriz não eram mais escondidas. O nariz não se aguentava e falavam por si. A professora deixou de lado o celular. Deu um panorama na sala de aula, naquela diante dela. Oito alunos, em silêncio, esperando o que fosse para esperar.

- Quem a mãe mandou para escola para comer?

Todos levantaram a mão, como se fosse parte da aula e obrigação a verdade.

"Para comer", sussurrou Fátima.

Aos poucos, sentimentos se sobrepõem a sentimentos, e o sentido de focar na sua revolta obscurece sua indignação, aplacando sua raiva e protesto. A fome tem pressa. O mal da humanidade é não sentir a fome emocional do outro, porque as pessoas sentem emoções e fome. A Beatriz na frente dela, o Guilherme lá no canto esquerdo. Na frente do Guilherme, o Matheus, e na frente dele a Paula; do outro lado da sala, Antônio, Débora, de cabeça baixa. No meio o Fábio e a Cinthia. Ela conhecia todos por nome, e mais ainda, conhecia parte da vida familiar de seus alunos, e daqueles em especial. O padrão entre eles seria mesmo a fome, que existe presente e triste, muito, muito, muito triste.

- Bem, levantou a professora, livro na mão, pedindo a todos para abrirem o caderno para atividades. Copiem com caneta azul, e iniciou um conteúdo aleatório de geografia.

Por um movimento mágico, Beatriz ergueu a cabeça, limpou o nariz escorrendo com ambos os braços. Ficou feliz internamente. O vermelhidão dos olhos se desfez em instantes. Uma luz de felicidade acendeu na sua mente. Ela abriu o caderno, separou a caneta e com tanto brilho no olhar começou a copiar da lousa cada palavra, com das maiores verdades existenciais. Beatriz era inocente, como todas as crianças ali, mas o que ela queria dizer em outras palavras seria a gratidão.

- Ah - disse a professora Fátima, conforme copiava, se a mãe de vocês falar para vocês virem para a escola para comer, falem para ela que ela está totalmente errada! Escola é para aprender, e isso que vamos fazer todos os dias. Vocês vêm para a escola para aprender!

Ninguém viu, mas Fátima, agora de costas, permaneceu assim por muitos e muitos minutos, copiando na louca - um hábito que ela não tinha -, simplesmente porque chorava a cada palavra na lousa, redescobrindo o que seria o amor nos pequenos gestos. Os alunos lá para comer, e ela sabia disso. A pandemia, por sua vez, exigia alguns sacrifícios. Fátima percebeu através da inocência de Beatriz e de todos aqueles oito alunos presentes, qual seria seu efetivo papel na pandemia. Por fim, Fátima saiu do grupo dos professores, que somente falavam em Greve Já! para mentalmente segurar firme a mão daqueles oito alunos e dizer "estamos juntos daqui para frente!". Fátima segue ainda aquilo que acha ser seu destino: acolher com conhecimento o coração de Beatriz e todos os demais.

flavio notaroberto