BREVE APRESENTAÇÃO: MIGUELITO
Miguelito ainda vive. Neste exato momento ele viaja de volta para o Brasil. Este livro, Miguelito: Memórias, que você lê agora, está pronto há alguns meses, saindo agora em formato de livro impresso. Porém, eu tenho próximo de mim, em cima de minha escrivaninha, ao lado da tela do meu computador, outras memórias manuscritas pelo próprio Miguelito, que ele escreveu nos seus anos confinados. Não posso dar detalhes porque não tenho autorização. Eu li e reli algumas vezes estes manuscritos do seu confinamento. São fantásticos e esclarecedores. Provavelmente, em um futuro próximo, elas virarão um livro para justificar este em suas mãos. Assim que o Miguelito real estiver no Brasil, eu me encontrarei com ele e discutiremos tanto este que ele autorizou a virar livro quanto suas memórias.
Confesso que ainda estou assimilando e processando com cuidado suas experiências dos nove aos vinte anos em seu auto-confinamento totalmente consciente.
Seu avô, padre Miguel, vive com a mulher Mariana em Alto Paraíso, em Goiás. Ele tem recebido algumas cartas do neto, de partes diferentes do mundo. Diz ele que são as experiências dos seus vinte a trinta anos. Tive acesso apenas à primeira delas. Já o pai de Miguelito, Pablo, passou alguns meses com o avô em Alto Paraíso. Veio atrás de dinheiro. Conseguiu o que queria. E partiu como fez das vezes em sua vida. Disse que iria para São Paulo.
A vida de alguns é ficar; de outros é partir; de outros raríssimos, como eu, fazer o que a imaginação lhe dá quando tem talento. Padre Miguel viu em mim um talento confidente para escrever e me deu o privilégio de conhecer os primeiros anos de Miguelito, começando pelas idas e vindas de seu pai, o Pablo que veio do Peru, quase divisa com o Brasil.
Eu inicio a narrativa de Miguelito através de seu pai. Embora nada o pai tenha influenciado a vida particular de Miguelito, senão o ter engravidado Terezinha.
Miguelito hoje está homem com trinta e dois anos, e por isto padre Miguel me orientou a trazer para as memórias as poucas coisas que sabia do pai e quis que as memórias do neto começassem com as primeiras memórias do pai.
Padre Miguel tem em si a complexa vertigem do sacerdócio e do homem que viveu e procriou. Tem filhos e os ama. Quer que o pai venha junto com o avô e as gerações se toquem em todos os momentos. Por respeito e por obediência, assim começa a história da futura vida de Miguelito. Por mim, este relato seria mais as memórias do avô do que as do neto. Eu argumentei apenas uma vez. A idade avançada do Padre Miguel e minha delicadeza de meu berço britânico não mais tocaram no assunto depois da negativa dele.
Assim iniciam as memórias daquele que escreveu suas próprias memórias e ainda vem mandando impressões do mundo, neste vasto mundo em temor depois dos atentados nos Estado Unidos em 2001.
São Paulo, 2002
CAPÍTULO 1.
O PAI DE MIGUELITO, PABLO TOMAZ
Miguelito Tomaz era o terceiro filho homem de Pablo Tomaz e Terezinha Pinto Tomaz. Nasceu em agosto de 1980, na Maternidade Bárbara Heliodora, próxima ao bairro Papôco - das áreas mais pobres de Rio Branco, capital do Acre, lá no norte do Brasil, onde muitos brasileiros do sul maldosamente insistem não existir.
Vivendo de favores há alguns meses em Rio Branco, e quase falido, Pablo Tomaz, – peruano da cidade de Pucallpa – não perdia a vida de boêmio prosador que era e contador de histórias. Em Rio Branco, ao longo dos anos 1978 a 1980, Pablo conseguiu fazer uma pequena fortuna, porém consumida toda riqueza que acumulara, sem nenhum arrependimento, na poesia noturna da vida. Chegou pobre; ficou rico; voltou à pobreza e partiu.
Em 1980, o peruano Pablo tinha 21 anos, dois filhos homens com a mesma mulher, Terezinha. Desposou-a em 1978 em terras brasileiras, dois meses depois de fugir do Peru. Entrou no Brasil sonhando a aventura de chegar ao Rio de Janeiro o mais rápido possível, porque o conhecia pelos comentários do patrão, Hector Munhoz, de quem, aliás, fugiu por causa de um justificável corneamento. Pablo, por sinal, era seu filho bastardo. Hector Munhoz, ancião de 96 anos lá no Peru, marido de Melissa.
Tinha, então, 19 anos o Pablo, e ele sedutor prometeu à jovem Melissa o amor (e seu calor) que o velho marido nunca lhe dera nos dez anos de matrimônio. Pudera! A impotência de uma doença física tão débil quanto a moleza de seus pensamentos deixava Hector Munhoz imóvel em uma cadeira ao longo dos dias inteiros.
Melissa tinha então 16 anos quando foi parte do pagamento da dívida que o pai da jovem contraiu com o velho Hector. E não foi a contragosto. Inocente e obediente. Via em seu sacrifício o destino da honra.
Aos 26 anos, no entanto, Melissa era ainda tão sexualmente pura e virgem quanto o pó que Hector produzia e exportava para o Brasil tendo por principal rota o infindável rio Amazonas. Melissa, 26 anos, inocente (coitada!), ingênua (coitada!), desesperada (coitada!) e virgem (que angústia!) deixou-se facilmente envolver pelos sussurros Pablo.
─ Vai pensar sempre em mim, meu querido?
─ Vou, respondeu beijando-a na testa.
─ Vai me tirar daqui e me levar com você, meu amor?
─ Vou, disse, despindo-a da saia.
─ Vai ser o pai de meus filhos?
─ Vou, respondeu perdido em seus seios e pernas.
─ Você promete pela Santa Rosa e pela Nossa Senhora das Mercês que fala a verdade?
─ Vou, falou mecanicamente. Quero dizer, prometo, claro que prometo, e finalizou apagando as velas, mergulhando na escuridão da noite de cabeça ao longo de seu corpo inteiro. E se gritos houve, foram internos e ensurdecedores. A menina perdeu a virgindade e se apaixonou.
O marido Hector Munhoz despachava para o Brasil centenas de quilos das barras de pó branco, produzidas lá na sua fazenda Santa Clara. Toda semana. As barras deste pó branco rendiam muito e eram consumidas e valorizadas nas altas classes sociais, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Era um néctar em pó ao nariz destes dionisíacos. Todos temiam Hector. Sua autoridade tinha muitos tentáculos, muito poder e, com isto, muitos olhos e ouvidos obedientes. Um destes ouvidos ouviu e viu na imaginação as promessas de Pablo para a Melissa ao longo de uma noite inteira. Os gemidos abafados ecoaram em sua mente.
Quando ficou sabendo do filho bastardo sobre a virgem de sua velhice ficou em silêncio. O velho Hector Munhoz não mais matava e nem mandava matar seus inimigos e desafetos e traidores por razões religiosas. No final dos anos 1950, quando começou seu pequeno império, abraçou a Igreja Católica e fazia valer todos os Dez Mandamentos. No entanto, não deixava de ser justo com os injustos. Cada qual tem que pagar com o devido merecimento qualquer débito. Para o bem; para o mal. A morte, dizia ele, quem dá é Deus, só corrijo as causas e faço valer as consequências. Afinal, o mundo anda muito mimado e desobediente.
E veio o capataz Rodriguez. Era início da tarde de janeiro de 1978. Chovia muito. Não apenas levantou as suspeitas, como disse tudo o que ouviu entre a pura Melissa e o filho bastardo Pablo Tomaz. Depois de refletir em silêncio em sua cadeira:
─ Bom saber!, exclamou com dificuldade e a expressão vazia no olhar indiferente a tudo, sentado no átrio do casarão rústico de sua fazenda.
─ Eu ouvi tudo, patrão. Só não olhei por respeito ao senhor. Os dois passaram a noite..., e não conseguiu continuar mais detalhes. O que devo fazer?
O velho Hector Munhoz nem mais tinha em si qualquer consciência de sexo, de pudor, de desejo, há pelo menos 15 anos. Nem a honra importava muito. Pesou muito foi a autoridade. Um homem, se não tiver autoridade, que ao menos seja temido. Algo que até a sua morte, não abriria mão. Sua autoridade. E para manter-se temido, mandou arrancar do Pablo, o pai de nosso futuro herói, Miguelito Tomaz, o instrumento de calor que atenuou o fogo de Melissa, e matou sua pureza, e enfiar – ainda ereto como prêmio – no traseiro dele com todas as pompas de galanteador.
─ E é para deixar lá dentro, falou sofrivelmente o velho. Deixar lá dentro. Só não deixa morrer que é contra os mandamentos. Costura. Costura para não sangrar muito. Leva para o médico. Só não mata. Não devemos pecar. Ele vai continuar aqui e saber quem deve obedecer. Depois vejo Melissa. Vai. Vai lá, e terminou, voltando a fechar os olhos para exatamente na outra manhã nunca mais abri-los. Morreu no outro dia. Capricho do destino.
A janela do quarto de Melissa era a dois metros de onde vinha a conversa. E ouviu as ameaças. Seu coração apertou. Nem medo de si teve. Temeu pelo seu amado que a tinha desposado de verdade.
─ Hoje à noite, patrão, vamos pegar o abusado.
Ela ouviu não de bisbilhotice. Pura coincidência dos enredos da vida. Seu menino estava em perigo. Acreditou nas juras de amor do jovem. Contou para ele, antes do anoitecer, que iriam pegá-lo. Cada palavra, cada detalhe. Nem pensou em si. Já escurecia. Seis horas na região equatorial, a noite é não escura e misteriosa quanto nossos medos e vontades de amar. Estava escuro. Muito escuro. A canção da natureza era ainda a chuva resiliente que insistia sem raios e trovões. E calor. Muito calor úmido. Pablo e Melissa se olharam. Ela não havia visto o velho marido desde manhã. Fingiu dor de cabeça o dia inteiro. À noite foi ao quarto do menino. Será uma despedida! Ambos ouviam a fraca garoa e o coaxar dos sapos. Mesmo assim, a excitação do desconhecido, da despedida, do clima, da noite, da chuva foi tamanha que nem o medo e o desespero da notícia os impediram de investirem-se um contra o outro porque sexo é a coragem da vida, e o primeiro suspiro de uma futura vida; é a liberdade quando em comum acordo de dois corpos! Fizeram sexo. E foi, por hora, uma última investida de calor com a mulher do velho. Verdade que no futuro iriam se reencontrar. O legado deste último ato foi que nove meses depois nasceria outro filho, que não é ainda o Miguelito, mas filho de Melissa com Pablo, o que ninguém soube. A explicação abaixo.
Como o velho Hector Munhoz – novamente o enredo da vida – morreria no outro dia pela manhã, ninguém insistiu na calúnia de que o filho de Melissa não seria dele. Não morreu corno, diziam. Morreu porque sexo mata o coração fraco do velho! Para a sua honra, ficou a dupla homenagem. Ganhou fama de viril para todos e corno para os íntimos. No futuro, o corno iria prevalecer. Melissa assumiu com surpresa aos poucos os controles do comércio do pó e deixou afirmar as verdadeiras maldades contra o seu finado marido. As caricaturas vem do riso que enfeitam a vida! Afinal, Hector Munhoz não foi dos mais alegres homens neste mundo. Quem não é alegre é caricato.
Voltando à fuga de Pablo, este fugiu na mesma noite, levando consigo uma grande quantidade da mais alta pureza do pó branco, que Melissa lhe deu. Imaginem só!, e que ela sabia valer muito dinheiro no Brasil. Um punhado de dólares. Dois anéis de ouro.
─ Vá para o Brasil, Pablito! Vá para o Brasil. E tome aqui, meu amor, estes dois anéis. São de ouro. Um meu e outro do velho! Vai precisar deles. Leve com você. Leve tudo.
Pablo levou tudo por insistência. Antes de partir, em cena dramática, Melissa, sem temer pela vida, perguntou com os olhos marejados:
─ Você volta para me buscar um dia, Pablito?
─ Sim, minha pureza. Claro, minha riqueza, e acalmou-a, beijando-a. Eu te amo, disse em um castelhano muito sensual.
(Ah, se Melissa e Pablo soubessem que ela ficaria viúva no outro dia! Ah, se ela soubesse que ficaria grávida de seu Pablito! Ah, se a vida nos desse um crédito antecipado de nosso destino! Aí não teríamos desilusões de parte de nossas histórias que são o conjunto de nossa herança mais valiosa – nossas memórias. A separação deles foi tão rápida quanto os momentos de fogo com fogo. Não há química mais violenta do que a virgindade de uma jovem, ainda mais a virgindade aos 26 anos e um jovem homem imberbe de 19 anos!)
Olhando para os anéis, momentos antes mesmo de partir, Pablo enfiou-os no bolso da calça e puxou Melissa para próximo si. Apertou-a ventre contra ventre, onde estava seu pensamento naquele momento. Sentiram o pecado entre as pernas. Uns esfregões. Isto excitava-os, deixando ambos com mais calor. Pablo quis mais; Melissa temia e fez o seu jovem amor refletir na impossibilidade de viver sem a própria vida, que valia muito para ele, ou pior, sem o seu instrumento de calor. Pior ainda, colocado tudo dentro de seu rabo! Temeram. Despediram-se definitivamente com um beijo. Partiu, saltando pela janela os dois metros ao chão. Barros e poças d’águas. Conhecia o mato denso da floresta daquela cidade peruana e adentrou-se até encontrar uma estrada. Foi por ela. Ainda chovia.
Pela manhã, sem dormir a noite toda, chegou ao rio Ucayali.
─ Daqui posso ir para o Brasil, pensou alto.
Um pequeno barco. Foi até ele. Conseguiu carona nele em direção ao rio Amazonas. Ofereceu trabalho, limpando e ajudando qualquer coisa. Neste momento, o importante é ir. Pablo sabia ser agradável. Ir para Manaus? Não! Arriscado. O velho Hector tinha negócios por lá. Seria fácil para eles. Melhor descer o Brasil. De barco em barco, de caminhão em caminhão, de ônibus em ônibus para o sul. Concluiu que o Brasil era uma extensão do Peru. Muito mato e água. Muita água sempre. Índios. Muitos índios. Onde estão as fronteiras? Na política, concluiu.
Vinte dias depois da fuga, chegou à capital do Acre, Rio Branco, e se hospedou no bairro Papôco, num pequeno cortiço cuja proprietária viria a ser tia de Pablo. Do pó puro que carregava e muito valorizado por quem o conhecia, Pablo trocou por comida, dinheiro e quartos para passar as noites.
Seu coração não via como fuga sua andança, mas sim uma aventura, uma viagem. Não se sentia fugitivo. Era um desbravador, um aventureiro em terras peruanamente estrangeiras. Sentiu-se senhor de seu destino e aprendeu a ser homem completo. Usou e abusou das histórias inventadas e da lábia sedutora como sua segunda maior virtude. A primeira virtude sua era sem dúvida o seu amor pelo sexo feminino. Amava sempre a todas. Em cada vila, cidade pequena, aglomerado de gente, deixou a sua marca.
Melissa, por sua vez, a esta altura, alguns dias depois, virou um longínquo passado na mente de Pablo. Não totalmente esquecida. Quase esquecida. Pela imprevisibilidade do destino, anos depois, Pablo e Melissa iriam se reencontrar em condições bem diferentes, vítimas circunstanciais do eterno retorno. Ela soube onde ele estava, pediu para ele voltar para conhecer o filho que tinha deixado; ele, sem perspectiva voltaria aos braços de Melissa para partir novamente anos depois em direção a Alto Paraíso, em Goiás. Assim conhecemos o pai de Miguelito.
CAPÍTULO 2
PABLO CONHECE TEREZINHA, MÃE DE MIGUELITO.
P
ablo era charmoso, sorriso largo, estatura média, um corpo fino, com músculos definidos. O cabelo era liso, grosso e preto. A pele branca. Olhos puxados. O que dava charme no danado, no entanto, era a combinação do olhar com o sorriso. Não havia beleza estética isoladamente. Era a harmonia e a sedução ingênua dos olhos e da boca, já que os primeiros eram largos e a segunda grossa. Nem seu tanto anjo nem demônio também. E as mulheres amavam este misterioso peruano.
No Brasil, em momento algum, deixou de lado o fogo, porque vivia consumido pelo mesmo calor entre as pernas, que o expulsou de Pucallpa. E não se continha e nem se conteve. Dia sim, dia não, ao longo dos vinte dias do Peru até o Acre, ele esfriava o calor em todos os vilarejos, em casas de meretrizes, ou, quando tinha sorte, com alguma índia sapeca que procurava marido, ou ribeirinha ingênua. Não precisa lembrar que esta fuga foi em 1978, e ele tinha 19 anos. Um menino. Um criança. Um aventureiro. E com a mente na aventura e não na fuga, chegou ao Acre.
Em Rio Branco, ele conheceu Terezinha, sobrinha de uma santa beata, dona de um cortiço no bairro de Papôco na Rua Marechal Rondon. Em poucas semanas na cidade, ele desposou a menina, tirando a virgindade dela logo nas primeiras tardes quando a tia ia ajudar o padre Miguel e o Firmino na fabricação da hóstia para as missas de domingo.
Terezinha foi filha abandonada pela mãe e morava com a tia de coração. Jovem bobinha de 15 anos, nunca teve mais de cinco minutos de conversa com um homem feito, e logo ficou encantada pelo peruano no primeiro Buenos Dias! e pelo seu instrumento de fogo, que deu muito medo na menina, é verdade, por tão avantajado, mas também foi paixão profunda.
Terezinha ouvia sempre a tia de coração. Neste sentido, era religiosa. A tia beata, que comungava a santidade e a castidade para o Reino do Céu, dizia do pecado que há no sexo fora da união sacramental. E é privilégio a poucos, menina. A vitória para Deus recompensará todos os esforços e sacrifícios. Apesar de toda concordância, o esforço foi pouco e o sacrifício nada. A tia beata e o Reino de Deus perderam. E Terezinha ficou grávida de Pablo, que ainda não foi do nosso herói Miguelito. A história deu-se resumidamente assim.
A tia alugava quartos para trabalhadores da borracha e aventureiros de passagem, que cruzavam Rio Branco para outros e inúmeros destinos. Pablo mais um cruzante. E por pequeno capricho ficou mais uma noite. Nas primeiras horas da manhã, sem dormir, leu bem sofrivelmente Pensão Benta. Eram por volta das oito horas de uma segunda-feira. A tia beata atendeu com um pequeno sorriso. Não viu maldade. Arriscou algumas palavras em espanhol. Falou o preço. Como ele pagou um mês adiantado, embora quisesse apenas um dia inteiro para dormir e prosseguir viagem no outro dia rumo ao Rio de Janeiro, foi onde se hospedou. Hospedou-se e ficou. Conhecendo uma dúzia de palavras em português, somado ao talento para cantar, fazer rir e seduzir, um dia pela manhã, mais precisamente na quarta-feira, Terezinha se encantou pelo jovem peruano e não resistiu quando sentiu em si mesma a sensação do calor que a mulher do velho peruano sentiu infalivelmente. A tia fora fazer hóstia. Pablo e Terezinha foram fazer um filho, que ainda não é o Miguelito. E, um mês depois, a tia beata quase enfartou por causa do atraso do período da sobrinha, que era tão preciso quanto as estrelas do céu e as pirâmides do deserto aos olhos dos turistas. Deduziu que seria tia-avó:
─ Por Deus, misericórdia, menina retardada! O que você andou fazendo na minha ausência? Não vê que a vida no céu traz glória para as santas aqui na terra? E você, menina, deixou sua pureza satisfazer a vontade do primeiro par de olhos sedutor? Ainda mais estrangeiros? Ah, quando eu pegar aquele peruaninho de merda, eu vou arrancar com faca quente o mal que fez a você para os olhos de Deus! Mas que diaba estava em seu corpo para deixar um provocador te embeber de luxúria, menina? E agora este ventre que vai virar uma melancia igual à barriga do padre Miguel! E você não fala ainda uma miséria de palavra? Ah, padre Miguel! Padre Miguel. Vamos lá falar com o padre Miguel!
─ A gente vai casar!
─ Vai casar o quê, menina! Este vagabundo deve estar agora voltando para a fronteira de onde veio. Mas é uma imbecil! Oh, menina retardada! Oh, menina desmiolada! Oh, menina asnada! E o bucho crescendo! E vai crescer! Oh, menina que mamou na teta de anta!
─ Ele disse que a gente vai casar!
─ Vai casar quando Rio Branco for a capital do Brasil, menina anta! Vai casar quando todo mundo falar por telefone! Vai casar quando um pobre espertalhão for Presidente da República! Agora é esta! Me fala que vai casar! Ai, se pego este aventureiro! Ah, menina que fez o que não devia!
Pablo, por sua vez, temeroso, escondido no corredor do pequeno cortiço de quinze quartos, atrás de uma caixa d’água vazia, às vezes olhando para o fruto do seu calor no meio das pernas, encolhido e medroso, testemunhava toda conversa entre elas para ver se fugia ou assentava a vida naquela jovem, e faria família. Era estrangeiro em uma terra estrangeira. Já tinha pronta a pequena mala com ainda boa parte do pó branco do velho Hector Munhoz, que trouxera, e os anéis no bolso das calças.
─ Que vontade de mandar matar aquele peruano! Só não mando matar aquele aproveitador porque o sangue daquele diabo irá tirar de mim a pureza da castidade de meus últimos anos dedicados à virtude e à Deus, e mataria o pai deste bastardo que você vai carregar no ventre por 40 semanas.
─ Ele disse que a gente vai casar!
─ E ainda você acredita!, retrucou a tia, segurando as mãos para não arrancar os próprios cabelos.
Vale à pena um aparte sobre a beata tia de Terezinha.
As línguas da cidade e do bairro Papoco diziam que ela, antes de consagrar os últimos cinco anos à castidade e à virtude moral da Santa Sé, era conhecida como a Santa Clara das Noites nas casas de meretrizes de Rio Branco. E embora ninguém tivesse absolutamente nada com a vida pessoal da tia de Terezinha, e ainda mais do seu passado, o passado dela não a enganava. Nem ninguém. E com o dinheiro, e uma certa benevolência do padre Miguel, comprou um pequeno cortiço por um preço metade do valor. O dinheiro de muitos anos do calor de tantos aventureiros do seringal e o desconto por benevolência do padre em troca de uma favor que logo alguns deduzirão facilmente. Verdade que ela já estava cansada depois de tantos anos dedicados à vida dura. Confessou com o padre que queria parar e foi quando ele teve a ideia de ela adotar a órfã Terezinha com 10 anos – um pedido pessoal do padre Miguel!
Largou a noite de Santa Clara das Noites para virar a santa das missas dominicais. Religiosamente. O padre Miguel ofereceu o cortiço por um preço irrisório. Era terra da igreja, não se preocupe. Como a terra então era santa, aceitou e purificou-se de todo pecado íntimo. Passou a usar roupas escuras; deixou o cabelo voltar a cor castanho claro natural; e aos poucos a fazer parte da vida clerical como beata. Não se feria com os preconceitos nem as indiretas. E como gostava de falar da vida alheia, não demorou muito para ser totalmente aceita pela outras beatas de igreja. Não perdia uma missa na Paróquia Santa Inês, na Rua Alvorada. A castidade veio com as beatitudes e aprovação das outras irmãs porque nenhuma não pecava em mais nada, uma vez que prosear da vida alheia não pertencia a nenhum dos Dez Mandamentos e nem “amem a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo”.
─ Nossa, lá vai ela. Eu amo aquela ali, mas que vida perdida daquela imoral. Olha lá indo em direção à delegacia.
Lembravam da índia Chica do delegado.
─ Lá vai ela para mais um interrogatório. Toda semana. E vai provar mais qual crime?
À porta da igreja, testemunhavam passar a índia Chica, toda exuberante.
A tia de Terezinha, sem perder o puritanismo, dizia um “que vergonha!” constrangido pelo que foi, sem arrependimento no coração para os olhos dos homens.
O homem é mau e destrutivo. Quem se preocupa com a opinião alheia morre de desgosto. E este gosto ela não daria para ninguém.
Mas agora a tia de Terezinha estava com o maior desgosto de sua vida, e morreria de vergonha do ventre da sobrinha, que era para ser o exemplo da moralidade e castidade. Vergonha de si ela aguentava, mas vergonha alheia seria o fim. E quase agora arrancando os cabelos ouviu insistentemente de Terezinha:
─ Ele disse que vai casar comigo.
─ Casar o quê, disse em tom de desespero sem força para gritar! Já sumiu de Rio Branco, sua desmiolada! Já está embuchando outros ventres perdidos como o seu. E era o que me faltava para desgosto de minha cria que nem é minha! Criar filho de estrangeiro!
─ Sumi não, disse Pablo, para o susto quase fulminante da tia. E eu caso sim, confirmou.
Aquela assombração de supetão, arranhando suas primeiras palavras em um português sofrível e um espanhol grave deixou a tia paralisadamente estupefata e atônita. Por bem mais de um minuto. Sem saber o que fazer e se sonhava um pesadelo. Deveria ser sonho.
Quando acordou para a realidade, ao invés do ímpeto de arrancar de uma vez por todas o calor daquele ingrato e malfeitor, a tia os levou imediatamente para a igreja. Eram pouco das 10:00h da manhã. Com a mesma roupa, cabelo preso e cheiro de lavanda e talco, os dois seguiram a tia direto para o padre Miguel. Trocando algumas luzes queimadas da igreja junto ao seu jovem sacristão Firmino, o padre foi pego de supetão:
─ Casar?
─ Agora, apressou-se a tia.
─ Casar por quê?
─ Porque se amam e isto já basta para os olhos de Deus!
─ Você é batizado, meu filho?, perguntou padre Miguel ao Pablo.
─ Ele não fala português, padre Miguel, apressou-se a tia. Chegou faz um mês. E se apaixonou. E esta desmiolada também, e agora vão se casar
─ Mas se ele não for batizado...
Nisto a tia foi mais dura do que o esperado.
─ Se não for, vai batizar agora durante o casamento.
─ Mas como casar assim? E a aliança?
Pablo, que estava gostando da história toda, se lembrou dos anéis que sua efêmera Melissa lhe dera. Mais do que surpresa, a tia pela primeira vez sentiu menos desespero no coração.
─ Pronto, padre Miguel, aqui está. Duas alianças. Agora é só casar. Como se celebra uma união em todos os casamentos.
O sacristão Firmino, um jovem então de 13 anos, por ordem do padre Miguel, foi pegar a batina. Sem mais perguntas os uniu para o alívio máximo da tia e visível contentamento de ambos, Terezinha e Pablo. Já padre Miguel iria horas depois exigir mais detalhes da tia, e não por mexer na vida alheia, mas sim porque diziam as outras péssimas beatas que ele era o verdadeiro progenitor de Terezinha com outra meretriz que fugiu um mês depois do parto. E desde seus primeiros meses, cuidou dela no orfanato da igreja até fazer a menina morar com a atual tia.
O matrimônio de ambos, então, se confirmou sete meses depois com o nascimento do primeiro filho homem do casal em dezembro de 1978, o Juan. Em 1979, exatos um ano depois, vem o Juarez. E, por fim, em 1980, e de forma trágica, nasce o último, o Miguelito, que não teve o nome iniciado por “J” por uma circunstância inusitada que mais para frente será explicada. Mas a respeito de Juan, o primeiro filho, a tia de Terezinha, dizia para suavizar o rápido casamento:
─ Juan? Nasceu prematuro o menino, com 38 semanas, mas com saúde de leão, forte e gordo! Um bezerrinho de tanto que mama. É agarrado ao peito da mãe dia e noite. Com a vida forte assim só pode ser benção de Deus. Oh, menino abençoado de ter o pai e a mãe que tem.
Três dias do nascimento de Juan, padre Miguel o batizava. O padrinho e madrinha foram o casal Afonso e Diná, que moravam no cortiço há dois anos e meio. Pelo favor, ganharam seis meses de isenção do aluguel e conseguiram junta dinheiro para comprar seu terreno. A vida tem alguns momentos sem explicação que valem alguma coisa real em troca. Afonso e Diná ganharam algo sem saber ler e assinar. Belo casal.