terça-feira, 31 de março de 2020

conto 111

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário enconstar na dele, por uma, duas, tres vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via o quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor não se viver o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizasos, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é dolososo. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -

quarta-feira, 11 de março de 2020

A Entrega

- Que entende por "entrega"?

- Ano passado fiz trabalho voluntário, primeiro domingo de cada mês. Seis horas. A Casa de Repouso Sã, bem próxima de casa.

O entrevistador reparou na gramática. Gostou. Sussurrou mentalmente 'casa próxima de casa'. Os pequenos detalhes são essências delicadas.

Era um privilégio para ele. Há dois anos entrevistava. Sentia. Fingia. Manipulava nos detalhes. Raríssimas vezes se enganou.

- Juliano? E sobre entrega?

Ele tinha feito a barba de manhã. Passou a mão macia no queixo, amassiando seus pensamentos. 

- Minha vida foi uma entrega. É a minha virtude que carrego comigo. Não algumas horas. Nem algumas semanas. Uma vida de entrega. Uma existência.

Havia seis candidatos na sala, mais o entrevistador. O destino ou o acaso  deixou Juliano por último. Bateu a mão direita na perna cruzada. Abaixou a cabeça por um segundo para recordar. E voltou em instantes, instantes dos longos wanos de sua curta vida.

- Entregar-me, disse, foi a necessidade de meu sacrifício ser maior do que meu amor. Minha primeira entrega, de que me lembro, foi aos três anos, um carrinho, pelo portão de minha casa. Desde então percebi como eu precisava daquele sentimento de ser útil. Descobri o amor assim. E amar teve a dimensão dos relacionamentos humanos, com a natureza, com os animais e por fim comigo mesmo. Vivo contemplativo hoje. Vivo feliz. Vivo para a felicidade. Não vivo, no entanto, para o amor como fonte de egoísmo. O sacrifício gritou em mim. Eu o ouvi. Gosto de nesta passagem saber o que posso fazer para o outro.

- Você se expressa muito poeticamente, Juliano - interrompeu o entrevistador.

Os demais candidatos concordaram com o olhar.

- Continue, por favor.

- Uma vida. Uma vida fazendo o que deveria ser feito. Neguei o amor dos jovens e dediquei-me ao cuidado maduro. Quando digo negar o amor, falo que neguei a mim mesmo; e maturidade expressa levar em consideração o outro. Já a poesia é a herança inconsciente de meu amor. O meu primeiro e verdadeiro amor... Sem amor e sofrimento não existe solidão; sem solidão não existe o nosso momento individual; e sem sabermos quem somos, seremos um tanto que egoístas, achando que temos o mundo.

Ao final, Juliano não foi o escolhido candidato. Não imediatamente. Seis meses depois, o MacDonald's o chamou em função da enorme rotatividade. Juliano aprendeu que entrega em inglês era delivery. E foi trabalhar neste setor atendendo os pedidos.

Mas Juliano é amado por quem o conhece. E vítima de inúmeras paixões. O encanto.

- flavio notaroberto -

Antonin saiu para comprar fumo para o pai. Tinha uma nota de cinco. O vendeiro mediu tamanho do fumo e cortou sem embrulhar. Uma distração, porém, de um relincho forte lá fora e berrro de homem fez que Antomin devolvesse a nota pro bolso, sem malícia e má sorte. O vendeiro foi atender também outro freguês de uma compra mais robusta e trabalhosa. Caminho de volta, Antonin viu o passarinho parado contando. Naquela época era cassa com estilingue. Meteu a mão no bolso como sem lembrar que estava sem o seu estilingue. Ele, porém, sentiu a nota de cinco ainda vivinha dentro. Tirou para fora e seu coração de criança inocente tremeu para fora do peito. A nota nãp era mais sua. Ameaçou chorar. Não teve dúvida. Fez da nota um bolinho pequeno e jogou para o mato, que lá ficou para sempre. O fumo também já foi fumado pelo pai, que há muito anos não existe mais, e Antonin virou Antônio, homem velho e sábio, que desde pequeno não sabe o que é roubar e fazer o mal. Antônio ensina aprendendo.- flavio notaroberto -

conto

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassalador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário encostar na dele, por uma, duas, três vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via no quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor, não se vive o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizados, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é doloroso. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -