segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

E quando?

E quando?

E quando o dinheiro enriquece o futuro e o arrependimento bate?

E quando a oportunidade passará, lamentando-se no futuro?

E quando a ambição da vontade de ter não faz parte no presente?

Só que o futuro vem e a ambição continua, porque o outro realizou?

E você?

Ficou na ambição de ser, de ter, de querer, de sentir e de possuir.

Seu vazio.

E quando sua vaidade passageira cega cada possibilidade?

Sobra a sobra da sobra do resto.

E nada de você quer o que apenas era interesse.

As coisas sim se realizam e o fruto frutifica da raiz ao ramo que simboliza o desejo.

E quando você pensou a vida toda em ter e não teve, porque as vidas são mais trocas do que entrega.

Você queria só entrega.

Não cansa saber que seu erro é comum?

Não cansa o seu cansaço longe do refrigério de quem fez acontecer?

Nada cansa mais do que a fraqueza do interesse.

Nada mais exaustivo.

Ela persistente e fiel e singela sim permanecerá, e dos frutos a boca merecedora beijará seu sabor.

Ela merecerá.

Ele merecerá.

O resto cansanço do interesse que se foi.

Cansaço.

Cansa a alma oportunista.

E quando?

E quando?

E quando o dinheiro enriquece o futuro e o arrependimento bate?

E quando a oportunidade passará, lamentando-se no futuro?

E quando a ambição da vontade de ter não faz parte no presente?

Só que o futuro vem e a ambição continua, porque o outro realizou?

E você?

Ficou na ambição de ser, de ter, de querer, de sentir e de possuir.

Seu vazio.

E quando sua vaidade passageira cega cada possibilidade?

Sobra a sobra da sobra do resto.

E nada de você quer o que apenas era interesse.

As coisas sim se realizam e o fruto frutifica da raiz ao ramo que simboliza o desejo.

E quando você pensou a vida toda em ter e não teve, porque as vidas são mais trocas do que entrega.

Você queria só entrega.

Não cansa saber que seu erro é comum?

Não cansa o seu cansaço longe do refrigério de quem fez acontecer?

Nada cansa mais do que a fraqueza do interesse.

Nada mais exaustivo.

Ela persistente e fiel e singela sim permanecerá, e dos frutos a boca merecedora beijará seu sabor.

Ela merecerá.

Ele merecerá.

O resto cansanço do interesse que se foi.

Cansaço.

Cansa a alma oportunista.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Ao Amor

Te amo, meu amor, não te iludas.
A ilusão cria fantasmas
E versos meus do coração falam.
Eu te amo. Doi-me, meu amor.
O que queres tu de provas?
Chamar a saudade minha dor?
Amo-te como és, onde estás.
Como cantas, porque encantas
Os olhos, ermos, meus em lágrimas.
Diga-me o verso ao mar e ao vento.
Que som a distância encurta?
Do silêncio, chamo-te e nada.
Nadam, mar aberto, e não vejo.
Em mim apenas teu toque, teu jeito.
E rimo a ternura minha com teu beijo.
Amar-te-ei porque em mim existe
A parte bela do meu repouso.
És tu, volte que és tu te procuro.
Volte, embora eu saiba da partida.
Amor refaz o dor com dor doída,
Mas volte, Mila, a ti, todo bela poesia.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Como um ex-Mulher Saber Ser o Cão

Olha como mulher sabe ser o Cão.

Discurso de novela da Globo na vida real. No caso, uma ficção baseada em minha vida real. Espero que chegue ao destinatário. Lembrando. Sou escritor. A alma humana está em meus dedos. A alma humana em toques suaves.

A advogada ao saber que comecei a namorar seriamente:

- Agora, Priscilla, ele está namorando. Agora é o momento de tudo ou nada. Você sabe, Priscilla, que mulher é um demônio quando quer. Olha nós aqui! Olha o que fizemos com este homem: tiramos o carro dele, tiramos a casa dele, tiramos um pensão exorbitante dele, tiramos a dignidade dele, deixamos este homem morar em um cubículo no Itaim Paulista, sem nada, de favor. Olha como agimos quando deixamos e permitimos o cão em nossas vidas. Mulher quando dá para fazer o mal, as lágrimas, a cara de dó, o vitimismo e a chantagem convencem o mundo. Tudo justifica a compaixão cínica em nossos olhos. Manipulamos até o diabo. Vamos infernizar este homem agora até ele ceder tudo. Entregar tudo. Deixá-lo sem mais nada ainda. Senão esta mulher com quem ele está saindo vai fazer a cabeça dele e aí tudo ficará mais complicado. Mulheres em pé de guerra são iguais. A batalha é forte. Mulher contra homem, como disse, é fácil a vitória, porque somos lágrimas, indefesas, vitimistas e cheias de artimanhas diabólicas. Vamos processar este homem criminalmente pelas ofensas contra as nossas honras, ainda que sabemos que  nós não valemos nada, mas somos nós, vitimas, mulheres, contra um homem que nos ofendeu, porque o provacamos até ele ultrapassar os limites.

- Mas é o pai dos meus filhos. Sempre cuidou bem deles e ainda cuida, disse a Priscilla. Ele paga ainda um caríssimo plano de saúde para eles.

- Aos diabos este sentimentalismo de pai bom que se preocupa e cuida dos filhos. Isto é óbvio que ele é. Homem algum faz isto. E é aí que vamos pegar sempre este homem. Vamos usar o amor dele pelos filhos e continuar minando este homem emocionalmente, destruindo-o para que perca sempre o controle. Nada de sentimentalismo. Que pai dos seus filhos que nada! Agora que ele tem uma mulher ao lado dele, é um perigo. Estamos em risco. Ele vai é pensar nela e ela vai fazer a cabeça dele. Mulher é o cão. Você é mulher. Eu gosto de mulher. Mas sou tão cão quanto você. Então vamos amanhã intimar judicialmente este homem.

E lá do outro lado, o discurso dele para a pessoa que ele aprendeu a amar:

- Não que você esteja em segundo plano. É que eu estou e me coloco em segundo plano em relação aos meus filhos. Eles são a prioridade de minha vida. Você compreende?

- Sim. E concordo.

Porém, após a intimação judicial, o homem de caráter não vai perturbar com seus problemas pessoais a mente saudável de quem veio lhe trazer amor. Não mesmo.

Capítulo 6

Domingo. Mês de maio ensolarado, 2015. A churrasqueira preparada. Não na sacada do meu apartamento. Chamei vários amigos, alguns casais, dois empresários do ramo têxtil, que queriam conhecer minha vida familiar e social antes de transferirem suas contas para a agência do banco que eu gerencio. Sempre adorei desafios porque a integrida é a minha grande aliada. Meu pai e minha mãe me deram berço na favela. Eles não se dão bem em churrasco de qualquer natureza. Já se acabrunham na timidez. Preferem o sofa do apartamento. Meus irmãos cada qual com seus rumos diferentes na vida, ainda que ambos engenheiros. Falta um ano para se graduarem. Sou presente demais na vida de ambos, do Cláudio e do Caio. São gêmeos, mas aqui pontuo uma diferença bem desafiadora. Embora com o mesmo DNA e útero, são univitelinos, o Cláudio é hereto, o Caio homossexual. Nada surpreendente para mim. O Caio demonstrava os trejeitos reprimindo-os. Desconfiei. Partiu de mim a iniciativa do diálogo sério para tirá-lo do armário, daquele confinamento que parecia constrangê-lo em algo errado que o condenava. Nenhuma condenação é de Deus. Meus pais aceitaram como marca dos tempos modernos. A reação do Cláudio que foi cômica:

- Será que serei gay também, Carlinhos?

Foi cômica porque ele entrou em pavor existencial. Sem necessidade alguma. Impossível não conhecer e reconhecer a sua própria identidade, eu disse a ele.

- Gay nada, rapaz. Cada um conhece a si mesmo se não for reprimido. Não se assuste, rapaz. E se descobrir que é, já tem aí um parceiro para os rolês.

Como são muito semelhantes, eu sacaneava o Cláudio muitas vezes chamando-o de Caio. Ele me olhava e falava.

- Sou o Cláudio, caralho.

Faz tempo. Acho que em 2001.

Consegui mudar da favela para uma pequena casa alugada na Av. Abel Ferreira. Eles tinham onze anos. Hoje tem vinte e cinco.

Em 2001, eu tinha vinte e um. Trabalhava e estudava. Era funcionário de umas das clínicas da dona Cláudia e do doutor Carlos Sampaio. Meu modo de sentir o mundo e as pessoas já bem apurado. Puxei papo com o Caio a respeito. Falei direto.

- Caio, você não sente atração por mulher, certo?

O menino de onze anos se assustou. Com os trejeitos à tona, meaçou chorar. Tranquilizei.

- Para de ser bobo. Sou seu irmão mais velho e vou apoiar você, Caio. Seja feliz, meu irmão.

- Não.

- Não o quê?

- Acho que não gosto de mulher.

Sim. Fiquei constrangido pela resposta. Fingi que eu achava a coisa mais normal do mundo, ainda que pensasse diferente. Vida dele. Eu que puxei assunto. Eu apoio. Há sofrimentos que nem são sofrimentos assim. Liberdade somente traz prazer. Certamente o Caio aprendeu a ser mais livre a partir daquele momento.

O detalhe é que quando o Claudinho soube, nem se preocupou. Já disse que o único receio dele era ser gay também.

Nesta época, 2001, além de trabalhar, eu fazia a minha primeira faculdade, ou melhor, a minha primeira e única graduação. Cursava o primeiro ano na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Precisamente. Universidade de São Paulo.

Engraçadas nossas memórias. Das primeiras coisas que fiz quando entrei no prédio da faculdade, depois de me matricular, foi ir ver a carteira onde o poeta Álvares de Azevedo rabiscou seu nome nela. Rabisquei o meu também. Inclusive lá na USP.

A poesia estimulou sobremeneira minha cabeça favelada. Álvares de Azevedo ensinou-me a ser triste e emocionalmente suicida; Castro Alves apurou minha crítica e revolta para eu valorizar minha negritude e a história de minha cor; Gonçalves Dias mostrou para mim os índios idealizados brasileiros de modo fantasioso e a aprendi a amar meu coração carente cheio de paixão sonhadora com seus poemas de amor.

Cito apenas três das dezenas de poetas e escritores que me ensinaram a ler e, posteriormente, a sentir o mundo majestoso do pensamento dentro de minha cabeça. Curioso, não? Para quem não saía da quinta-série desde 1992, aos vinte e um anos no primeiro ano de Direito na USP foi um milagre e tanto. E o nome deste milagre se chama doutor Carlos Sampaio.

Ele me diagnosticou precisamente meu problema neurológico. Me orientou a um renomadíssimo psiquiatra. Me medicou com a dosagem ideal de um remédio cujo nome prefiro não mencionar por ser polêmico. Ao tomá-lo regularmente à época, ou seja, segundo semestre de 1995, parecia que o mundo criou enorme sentido para mim. Então, a progressão automática implantada pelo governo do Covas me salvaria no primeiro semestre e me tiraria da quinta série na marra, ela pouco serviu para mim. No segundo semestre de 1995, eu passei a ser quase um gênio. Isto é, percebia meu mundo e entendia a lógica do que lia e aprendia. Abstraía genialmente e achei simples o processo da cognição.

Em 1995, eu passei as férias de julho na casa do Cotonete. O moleque quase morreu meses antes, gesso na perna, no braço, arranhões, parada cardíaca, convulção. Numa única noite. Minha mãe foi solidária.

E este mês foi o mês do milagre. Mês da transformação da personalidade do doutor Carlos Sampaio. Ele quis e conseguiu ser um pai e marido dos mais protetores e cuidadosos. De quebra, consertou meu mundo neural para maior entendimento. Meu software no cérebro mal-conectado foi descoberto pela intuição dele.

Ao longo do mês de julho, o pai e o filho se descobriram no amor.

Com Cotonete e eu sempre juntos, meu médico neurologista teve a sensibilidade de minha anormalidade no dia a dia. Eu era desastrado, desajustado, atrapalhão, no mundo da lua. Matou meu problema em dois testes de atenção. Incrível.

Meu segundo semestre na escola foi outro Babão. Cotonete, ainda perneta e manete com os gessos ganhos no futebol e no morro abaixo, virou o burro entre mim e ele.

Para resumir a minha escalada à faculdade de Direito na USP.

Em 1996 fiz suplência da sexta à oitava séries. Com 17 anos, no primeiro colégio. Na escola pública passei tranquilo. Trabalhando muito e estudando excelentemente. Terminei o Ensino Médio com 19 anos. Com 20 anos fiz cursinho pré-vestibular popular. Aos 21 anos aprovado em direito na USP. Nos últimos colocados. Mas na primeira chamada. Vi meu nome na lista. Bati no peito, berrei os Racionais "o preto aqui não tem dó; é cem por cento veneno". Depois me arrependi.

Porém, era só o início do início do início do início de algo que poderia nunca ter iniciado. Mas iniciei para o mundo quando o mundo iniciou em minha mente. Agradeço demais ao doutor Carlos Sampaio.

Durante este processo, o doutor Carlos Sampaio e a dona Cláudia me forneciam o medicamento, que era caro e impossível obter no SUS. Não queria mais nada deles. Somente acesso justamente àquele elemento químico extra para fazer algumas conexões neurais funcionar com muito mais precisão dentro do meu cérebro. Nada mais eu exigia da vida. Somente aquelas pílulas. E agradecia cada caixa, beijando-a. De minha parte, me dediquei o máximo para ser bom aluno, bom filho, bom amigo, bom ser humano. Existem dignidades inegociáveis. O resto era comigo. E fui por mim mesmo.

- Caio, perguntei no sábado à noite, vai fazer algo amanhã? Tem compromisso?

- Não. Por quê?

- Me ajuda no churrasco, então. Vou receber amigos e dois empresários que podem ser excelentes correntistas no banco. Este ano de 2015 a crise ronda. Uma crise mais política e dos patrões. Mas preciso de bons clientes. E eles existem.

- Por que não contrata um buffet, Carlinhos? É para isto que serve buffet? Mas eu ajudo. O que preparo? Preparo o quê?

- Faz a maionese, o vinagrete; lava o agrião e os alfaces. A mãe fez alguns doces que estão na geladeira. Reservei a churrasqueira 2, ao lado da quadra de tênis próxima às árvores. Deixa tudo bonitinho. Ajeita para mim.

- Já me cansei só de ouvir o tanto que falou. E o Cláudinho?

Fingi que nem ouvi. Apenas disse obrigado. O Claudinho foi para a praia surfar em Cambury.

Neste sábado à tarde eu havia recebido uma mensagem da Marcela, perguntando se eu estava bem. Esta mesma que havia me dado um pé na bunda no dia anterior no Reserva Cultural na Paulista. Pensei em responder com indiferença. Fiz melhor. Ignorei. Perguntei para a Jéssica se ela estava livre no domingo. Ela respondeu que sempre livre para mim. Eu a convidei para o churrasco.

Admito. A Jéssica é uma das pessoas com quem eu saía durante a ausência da Marcela na Europa. Quase um ano! Para não sentir-se ausente, faz-se presente. A Jéssica gostava de mim loucamente e sempre presente. Não tinha entendido a razão de não a ter ainda namorado até então. Já era trauma na verdade. Outra branca paixonada pelo mulato alto, inteligente e engravatado. Minha mensagem foi até provocativa.

- Quero meu amor no churrasco aqui em casa amanhã. Depois, horas e horas de amor nos nossos lençóis.

Ela morava em Pinheiros. Eu trabalhava próximo do apartamento dela. Dormia muito na casa dela. Em nossos lençois. Ela enviou aqueles emotions de beijinhos. Eu iria começar a namorar a Jéssica neste mesmo domingo. Como disse, um domingo de maio de 2015.

A mulher que me traz enorme felicidade hoje é ela. E que felicidade. Inclusive, está grávida de dois meses. Vai nascer em fevereiro de 2016, no mês que vem. Vou ser papai. Não me casei ainda com ela. Moro com meus pais e meus irmãos. Na verdade eles moram comigo. Como nada foi planejado, pedi para a Jéssica alugar um apartamento no meu prédio no Anália Franco para eu acompanhar a gestação ao seu lafo. Mulher independente e bem resolvida toma decisão rapidamente. Saiu de Pinheiros, na Henrique Schaumann. Em três semanas veio para próximo de mim. Estamos juntos. Ainda em 2016 nos casaremos, depois do nascimento do Tiaguinho.

Jéssica foi a primeira a chegar no domingo. Bateu no interfone às dez. O Claudinho na praia. Caio comprometido comigo, não saiu sábado à noite. Dormia. Minha mãe, zelosa, havia colocado a mesa do café da manhã. Meu pai ficava na sacada desde as seis horas, olhando São Paulo ou olhando para si mesmo. Eu dormia.

De manhã, eu ouvi literalmente o galo cantar, porque me distraí na madrugada lendo o Gênesis. Não me ligava nada à religão. Nem ligo. Senti um misticismo em meu coração. Abri a Bìblia no versículo 1, e não parei até Moises terminar a história da fuga do povo Hebreu da escravidão do Egito e da Aliança de D'eus com o Povo Escolhido.

- Bom dia, dona Maria, cumprimentou a Jéssica.

Ela conhecia meu pai, mãe, irmãos, amigos. Menos doutor Carlos Sampaio e dona Cláudia. Mas os demais, sabia o nome e os gostos. Sabia fazer mimos. Sabia conquistar corações. Tentou um ano inteiro conquistar o meu. Lá no banco. Que coisa é o destino e mais ainda o amor.

Ela correntista antiga e muito exclusiva. Eu fui transferido no início de 2013 para gerenciar contas de altas fortunas.

Em mais ou menos junho de 2013, o primeiro contato entre nós. Dei por mim que quase semanamente ela tinha alguma pendência esquisita sobre seus investimentos e movimentações. Nas primeiras semanas, eu era solícito, até quando comecei a ler os atos falhos dela. Ainda não é o momento de narrae sobre. Mas eu fui muito direto. Acima de tudo tinha de ser profissional.

- Dona Jéssica, a senhora está interessada em mim?

O silêncio do outro lado do telefone foi tão grande que ouvi o seu coração acelerado pela vibração dos seus lábios.

- É para ser direta, meu filho? Claro que estou.

- Eu já sou comprometido.

Nesta época eu era noivo da Marcela. Com anel no dedo. Um grande anel que compramos na nossa visita ao irmão dela na Inglaterra. Eu adoro estas pequenas testemunhas de nossas memórias. Me excitam demais.

- Sei que é comprometido. Mas é o gerente de minha conta. Algum problema? E é proibido gostar de alguém comprometido? É proibido eu tirar ou inventar dúvidas para falar com você, doutor Carlos? Se for proibido, eu acho que perdi esta aula sobre os relacionamentos humanos. E quer saber? Não tenho a mínima vontade de me sentir constrangida por um mal que não fiz... ainda. Amanhã invento alguma desculpa e ligo para você. Tchau e beijos.

Eu me surpreendi com a resposta. Abusada. E pensei "com ou sem a Marcela, eu vou comer." E peguei a Jéssica em Búzios. Mas peguei dois meses depois da minha noiva virar jornalista no tablóide londrino. Peguei. Ela me pegou. Fomos pegos. Já disse que ela está grávida e agora tomando café da manhã com a minha mãe no meu apartamento.

- Bom dia, eu disse de cueca.

- Bom dia, querido, sorriu. Venha ao meu lado tomar um delicioso café que mamãe preparou.

- Bom dia, Carlos.

Minha mãe na minha frente nunca perdeu esta coisa séria de querer sempre ser a mãe ordeira, concentrada, modelo de como lidar com as pessoas na sociedade.

A manhã de domingo passou rapidamente. Disse do sol ensolarado porque há sol que queima e desagrada e cansa
Este sorriu. O sol ensolarado estava muito gostoso. Por volta do meio dia, preparado tudo na churrasqueira. Meu irmão Caio aprendeu a ser a organização em pessoa. Queria os detalhes em harmonia. Colocava amor em tudo. No fundo, no fundo eu sabia que ele se ofenderia se eu não o chamasse para organizar para mim. E, claro, falante demais e apaixonado pela Jéssica, outra falante.

Aos poucos foram chegando os amigos, os casais com uns filhos. Os amigos empresários que poderiam ser meus novos correntistas. Dona Cláudia também. Estranhei ela vir sozinha.

- Oi, dona Cláudia, e lhe beijei. E o doutor Carlos Sampaio?

- Disse não estar bem. Talvez mais tarde apareça.

A partir daquele momento senti pouca satisfação em tudo. Aparentemente estava plenamente bem e contagiante. Apresentei a Jéssica a quem nãi a conhecia. Descobri que ela e o Marcos frequentaram o mesmo colégio judaico Sion em Higienópolis. Primos distantes. Se formaram juntos. Surpreesa no fundo constrangedora  Sabe aquela história "o que faz aqui?" etc. e tal. Passaram boa parte conversando. A Jéssica era uma judia de excelente positividade, mas arredia e rebelde. Bom coração e abusada. Demais.

Peguei meu celular e liguei para o doutor Carlos Sampaio. Cinco caixas-postais. Liguei para o fixo. Nada. Ao mesmo tempo eu na churrasqueira. Adoro. O Caio e a Jéssica acolhendo todos os presentes fazendo-os se conhecerem puxando papo de música, política, religião, filhos, esportes. Na brasa, em meu silêncio, pensando no doutor Carlos Sampaio, me distraía daquele presente. Quase deixei meu celular cair no fogo. Fui atender com muita ansiedade a chamada Dr. CARLOS SAMPAIO em letras garrafais.

- Fala, doutor Carlos, era ele se referindo a mim.

- Onde está o senhor?

- Em casa.

- O senhor não vem? Está fazendo falta.

Pedi para o Roberto, amigo da faculdade, para assumir a churrasqueira. Ele entendeu. Na mesma hora tomou meu avental. Éramos parceiros de longa data.

Saí do falatório. Busquei um pequeno bosque a três metros. Calmo. Silencioso. Pude ouvir melhor o doutor Carlos Sampaio.

- Hoje faz exatamente vinte anos, doutor Carlos.

- Do quê?

- De quando bati na porta de minha casa como mendigo e perguntei se poderia voltar para meu lar e para a minha família. Nunca esqueço esta data.

- Quer conversar?

- Mais tarde. Me perdoe a ausência.

Combinamos de eu ir à casa dele assim que terminar. Não sabia o que dizer. Fiquei ao mesmo tempo tranquilo pela ausência dele e ansioso. O último amigo foi embora o que aconteceu umas sete horas da noite. Os primeiros foram os empresários. Apenas o não-judeu transferiu sua conta para a minha agência.. O amigo da Jéssica criou desculpas que não vem ao casa traduzi-las por cansaço. O outro, porém, era substancial. Que belíssima conta que ganhei. E um belíssimo prêmio do banco.

Ao término, Caio, Jéssica, dona Cláudia e inclusive minha mãe deram um pequeno tapa no local para não deixá-lo imundo. As sobras para a geladeira. Bebidas e comidas. Domingo agradável. O Caio foi para a Augusta ver uns amigos. Dormiria fora e de lá para a FEI. Minha mãe só descansaria depois de limpar tudo na cozinha impecavelmente. Meu pai voltou para a sacada. Amava seu cantinho. O Claudinho chegou tarde da praia.

- Tchau, dona Maria, e deu um abraço seguido de um beijo. Foi à sacada e se despediu do meu pai.

- Eu vou com a senhora para seu apartamento, disse-lhe.

- Então vamos.

Jéssica pediu para irmos no seu lindo USV. Concordei. Ainda teríamos uma noite de amor nos nossos lençóis no apartamento dela em Pinheiros.

Na vida m coisas acontecem em um único dia de modo inclusive atropelado. Natureza de nossa contemporaneidade.

Ao chegar no apartamento do doutor Carlos Sampaio no Analia Franco, ele se distraía com um enorme quabra-cabeça. Estava no início. Ele se levantou. Comheceu a Jéssica.

- Quebra-cabeca? Que legal! Adoro!

- Quer terminar para mim?

Estavem bem no início. Surpreendentemente ela disse que sim. Fomos para a sala, eu e o doutor Carlos Sampaio, que resgatou suas memórias de vinte anos atrás cheias de emoções. Sentamos próximos à sacada. Ele começou sem delongas.

- Naquele dia em que Luiz Gabriel teve as paradas cardíacas, fiquei entre a loucura e a morte. Não havia escolha. Cheirei mais cocaína do que pude imaginar. Ninguém sabia, mas tinha três dias sem banho, sem comer, bebendo água e cheirando pó. Trocava de roupa. Cheirava e saía de casa. Ia para o trabalho. Cheirava e atendia os pacientes. Ia para uma boite, cheirava e enfiava dinheiro na calcinha das strippers. Na boite, doidão, de malgrado recebi a ligação que meu filho Luiz estava no hospital. Eu pensei "Que porra de menino maldito! A terceira vez em um mês!" Nem iria dar atenção. Entre tantas mulheres gostosas interessadas no meu dinheiro veio, porém, a imagem da mulher que não era gostosa nem stripper mas que tinha o sorriso mais apaixonante deste mundo, o da minha mulher, da minha Cláudia...

Que por sinal, de repente, aparece com uma jarra de suco e aquelas bolachas gostosas de chocolate. Ela encheu o copo do marido e o meu. Ele deu um gole. Sentia a boca muito seca. As emoções nos desidratam. Vejam nossas lágrimas. E ele continuou.

- Na minha mente não saía então a imagem da mulher que eu amo. E por ela vivia. Apenas por ela, deixei minha diversão lá. O filho dela mal-formado no hospital. Da minha mulher que eu amava e ainda amo. Fui para meu carro. Estava em Moema. Acelerei e recebi muitas multas por excesso de velocidads até o Iva. Cheguei nornalmente. O Luiz aparentemente lúcido. Fui ao banheiro cheirar. Ao cair da noite, porém, uma convulção. Uma hora depois, parada cardíaca. Mais algumas horas se repetiam. Desespero. Quase perdi o Luiz, que não era ainda amado por mim. Eu quase o pedir em minhas mãos. Coloquei na minha cabeça que ele não iria morrer naquele dia. Tinha hora marcada. Ela, no entanto, não tinha chegado. Não nas minhas mãos. Meu mundo, então, era paralelo ao do hospital. Somente via uma criança lutando pela vida, e uma criança com hora marcada. Vai morrer, mas não nas minhas mãos.

A narrativa do doutor Carlos Sampaio muito forte. Algumas lágrimas caíram dos meus olhos. Visivelmente. Fiz de tudo para me conter e me contive. Não era eu quem estava mal alí. E prosseguiu o doutor Carlos Sampaio.

- Pela manhã, estabelecido, normalizado, aparentemente bem, com a possível transferência para o São Luiz, a Cláudia apareceu para ficar no meu lugar. Então decidi que era hora de partir. Falei que iria para casa. Não tinha mais nenhum pó comigo. Era a hora de partir. Eu só queria cheirar naquele momento. Sem dormir. Sem nada. Peguei meu carro. Fui para casa. Subi. Tinha dezenas de papelotes. Passou pela minha cabeça cheirar todos até morrer.

Ao ouvir este depoimento, meus olhos arregalaram assustados. O doutor Carlos Sampaio prosseguiu.

- Meu filho em convulções. As paradas cardíacas. Criei fantasmas em minha cabeça, me assombrando a cada momento. Eu pensava em abrir uma carreira, mas ouvia os gemidos do Luiz. Braços, peito, pernas agitados. Aquele corpo já frágil buscando existir a todo momento e eu diante da cocaína que me libertaria para a morte. Eu dei um grito de tanta angústia. Continuei gritando. E gritava cada vez mais alto. Dois dos seguranças do prédio, cinco minutos depois, bateram na minha porta. Não ouvi. Eles entram. A porta aberta. Olhei para eles. Gritava diabolicamente. Não se aproximaram. E corri. Saí da sala. Desci as escadas. Todas. Correndo. Quase desmaiei no fim.delas de falta de ar. Saí na rua. A pé. E tomei a decisão paranóica de andar. Andar sem destino. Andar para aonde vida me levar. Sem rumo. Para a morte.

Reprimi as lágrimas, desviando meu olhar para a Jéssica concentrada no quebra-cabeça. Era a primeira vez que ele me narrava. Senti neste momento menos excitação no coração e nos olhos do doutor Carlos Sampaio. Ele dava goles no suco e eu me animei a comer as bolachinas de chocolate. Deliciosas.

- Andei até a Av Salim Farah Maluf. E não parei. Fui pela direira. Sempre a pé. Naqueles canteiros. Mais para frente na própria avenida. Movimentada. Era manhã. Não sei se nove, se dez horas. Andei. Cruzei a ponte do Tiete. Iria pegar a marginal. Resolvi ir reto. Fui cair na rodovia Dutra. E fui. Andando. Pensamentos suicidas iam e vinham. Andei. Cada passo a pé um segundo decisivo. Andei até Guarulhos. E de tanto andar, uma esperança. Uma pequena esperança andarilha, um chamamento a um grito de socorro invisível. Um albergue que sem querer foi minha salvação. Sem querer. O albergue  fica paralelo a Dutra. Entre as entradas e saídas da cidade. Muito pertinho mesmo. Saindo da Dutra o doutor Carlos teria várias entradas pra chegar no albergue. Acho que a da Defesa Civil seria a mais próxima, não sei ao certo. Seria uma reta só, com uma pequena subida,  virando a direita, passando uma única rua e na próxima a direita é a do albergue. Meus pés machucaram os sapatos. Chegaram encardidos. Eu cheguei encardido, agitado, excitado, alucinado. Era recém aberto. Dava para sentir o cheiro fresco da tinta. 1995. Ficava numa rua escura, num pedacinho de rua, destas sem saída. O lugar com uma fama ruim entre os funcionários da prefeitura. Como se fosse um castigo ir trabalhar lá.

Quem me disse os detalhes depois foi a Shaianne, assistente social por quem criei enorme efeto e quem me salvou indiretamente. Confessou-me ela que pela aparência do prédio, todo fechado, rua escura, num primeiro momento, tinha ficado em dúvida se havia feito o certo em pedir para sair do CREAS e ser transferida para lá. A Shainne foi a primeira pessoa que me acolheu.

- A mesma Shaianne? - perguntei curioso.

- Exato. A que administra as minhas clínicas.

- Não acredito? Interesseante. Continue.

- Um moribundo, entre a loucura e a morte. Eu me incorporei zumbi. Sabe estes do The Walking Dead? Não me dava conta de nada, a não ser a confusão mental. Meu coração alicinado, em abstinência, ameaçava taquicardia. Uma mão invisível me guiava. Cheguei. Tudo tão diferente dos meus hospitais particulares como diretor. Alguns albergados bêbados ou drogados me fizeram companhia nas primeiras horas fora do albergue. Outros estavam deitados em frente ao portão. Os funcionários lá dentro falavam alto. Minha excitação presenciou discussão das mais ordinárias. Bati no portão. Um portão grande, de ferro, azul, continuação de um muro também azul, com um pequeno quadradinho usado para ver fora ou dentro. Uma das funcionarios abriu o portão para mim. Foi a Shaianne. Eu todo de branco sujo entrei. Como albergado naquele momento, eu não poderia. Ninguém me perguntou nada. Nem ela. Em princício somente me acolheu. Não me viram como louco. Ou albergado. Nada. Fiquei um tempo em pé e antes que eu dissesse alguma coisa, um deles me disse:

-Tem documento?

Senti-me invisível por dentro. Fiquei com uma sensação  de invisibilidade. Muito forte a dor de não ser nada. Naquele momento minha humanidade tornou-se paralela à minha loucura e o que batia dentro de mim eram segundos para a minha rápida inexistência. Pessoas inivisíveis, pessoas menores na sociedade, pessoas sem sociedade. Alguns dos albergados chegam assim como eu cheguei. Outros, não. Depois da primeira semana lá, dei por mim da comunidade paralela e oculta dos albergados. O livro Longe da Árvore me ensinou demais sobre.

- Eu li recentemente.

- Alguns chegam folgados, querendo assustar e colocar terror como se cada um de nós não tivéssemos nossos pânicos internos. Outros chegam passivos e sabiam porque estavam alí. Estes querem e precisam e fazem de tudo para estarem alí para seu tempo de permanência. Eles não se envolviam em nada. Obedeciam. Vão embora da mesma maneira que chegam.

Eu cheguei um resto de lixo humano. Vivia de aparência, de aparência social. Eu fiquei na minha loucura e abstinência. Arrancava sangue de meus dedos para cheirar o meu vício que me escravizava. Apertava minhas mãos esmagando minha própria alma. Fui ao banheiro fedido várias vezes nos dias. Vomitei. Enfiei a cabeça na água imunda. Passei a língua no vaso sanitário e no chão. Tive espasmos e contrações dentro do vaso sanitário para esquecer a cocaína que me consumia. A minha abstinência respondeu os meus neurônios em colapsos. A Shaianne que ouviu meus gemidos no banheiro. Nos dias primeiros dias, sem se apresentar para mim, ela persistia comigo. Para o mundo, mais um drogado. Mas ela, do seu próprio coração, me acolheu. Para ela, um ser humano. Mesmo entre todo aquele nojo, ela me levava para o banho. O sorriso cheio de esperança dela era o contraste indescritível de mim. Tirava minha roupa sem pudor. Me banhava. Cuidava de mim. Às vezes eu demonstrava algo agressivo. Ela não se amedrontava. Uma hora bateu em minha face. Foi quando obedeci feito criança. Deixa-a cuidar do meu corpo. Aliás, pessoas como eu eram os que não queriam polêmicas, porque lutavam para voltar a viver. Na segunda semana, ouvi os caras com histórias pesadas de crimes. Ninguém mexia com eles. E eles não mexiam com ninguém. Não alí dentro. Um olhar daqueles para qualquer dos outros albergados, já dizia muito. Todo mundo entende. E havia outros, que estavam lá como se estivessem na própria casa. Meninos novos, usuarios de drogas. Alguns com a família organizada. Passavam a impressão de estarem no albergue para não ter que dar satisfação ou serem cobrados. Ficavam numa boa. Lá dentro eram os mais perigosos. Na terceira semana no albergue, eu me lembro muito do Gustavo e do Tadeu. O primeiro lutador de judô profissional. Era muito forte. Tomava remédio controlado o tempo todo. Já o Tadeu teve crise de pânico e se suicidou diante do diretor com uma facada na jugular. A cena foi horrível.

- Como era a vida diária?

- Nas três semanas que estive, a rotina era praticamente padrão. Às sete da manhã o movimento dos albergados intenso. Se levantavam, se trocavam, tomavam café. A gente precisa fazer tudo e pegar as coisas até as 8 horas que é o horário limite para permanencia no interior do albergue. Mas alguns saím bem antes. Às 4 da manhã. Saím alguns para o trabalho ou ficar no ponto onde mendigavam trocados. A maioria ficava por perto mesmo. Ficavam o dia todo. Conversando, usando droga, planejando furtos. No horário do almoço, desciam a rua e iam para o Bom Prato almoçar. Almoço bom, barato e farto.

- Bom Prato...

- No horário de entrada, ainda está  claro, no fim da tarde. Faziam uma fila. Um funcionário no portão de entrada pegava os nomes. A grande maioria se conhecia no albergue há muito tempo. Numa noite é um ou outro caso para o qual se abria ficha. Eles entravam, pegavam em um pote um pedaço de sabonete e íam para o banho, que era obrigatório. Os banheiros ficam logo no pátio de entrada. Existe nesse mesmo patio, muitos quadradinhos na parede. São os armários. Eles são numerados e as chaves ficam com o funcionário do plantão responsavel pelo serviço. Lá os albergados guardam o que possuíam até a proxima manhã. Depois, vão para o fundo. Eles até já sabiam a cama que passariam a noite. Tomam café da tarde. Umas seis horas. Depois mais ou menos às oito jantam. Alguns Assistem TV. Bem poucos. Outros vão para a cama, ou ficam na pracinha Central do albergue. Depois pegam as cobertas que são distribuídas no pátio de entrada. Não existe travesseiro. Dez da noite todos no quarto. Exceto dias de jogos de futebol.

- O esporte pode ser a alma de um povo, tal como a música. O dedo do capitalismo desgasta demais esta alma, eu refleti alto.

- Como?

- Nada, doutor Carlos Sampaio. Continue.

- Existe entre essa parte do fundo e a frente um outro portão menor. Ele é trancado após esse último horário. Não gostava muito dele.

- Quando chegava alguém desconhecido?

- Quando é a primeira vez que alguém vai pernoitar, os albergados respondem a algumas perguntas. Nome, de onde vem, se são dependentes químicos, se tem alergia, se são casados, tem filhos,  profissão etc., e depois seguem. Recebem um número de armário e instruções rápidas do que pode ou não pode. Depois passam o portaozinho e vão para os quartos encontrar uma cama vazia. Então para o refeitório.

- Como era? Quero dizer, o refeitório.

- O refeitório é um salão grande, onde ficam a TV,  umas mesas compridas, umas cadeiras, o sofá. Existe uma abertura na parede entre a cozinha e o refeitório por onde a refeição é passada. Tem um pequeno mural na parede onde os albergados se comunicam sobre vagas de emprego, ou qualquer outra coisa. Fazem fila para pegar os alimentos. Se conhecem e conversam bastante. Lá não é presídio. Não pode usar drogas, manter relação sexual, desrespeitar funcionário ou albergado, portar arma. As regras sempre respeitadas. Apenas tomar banho,  se alimentar e dormir.

- Sem exceção? - perguntei.

- Creio que sim. Talvez a única exceção tenha sido eu.

- Por causa da Shaianne?

- Exatamente. Por causa da Shaianne. Ela me perguntou dois dias depois, num momento de lucidez minha.

- Doutor Carlos Sampaio, não se lembra de mim?

Minha abstinência me dava picos de surtos com momentos de lucidez. Respondi que não.

- Eu trabalhei no Hospital São Luiz. Era a faxineira e limpava sua sala.

Tentei resgatar. Somente então pensei que há mais de dez anos.

- Na verdade, menos de dez anos. Mas faz tempo.

Já havia apagado qualquer remota lembrança daquela pessoa em minha vida. Porém, meu estado anormal me deixara sensível. Quem eu era naquele momento? O que eu era naquele momento? Um trapo humano com tremedeira, contrações muitas, conpulsões, querendo arrancar de minha alma, de meu cérebro aquela dependência que me deixava insensível às pessoas que me amavam. Aos poucos resgatei longinquamente a Shaianne. Não a fisionomia. Mas a imagem remota de um episódio nos arquivos do meu inconsciente. Quando dei por mim, eu pedi perdão a ela porque imagenei o que fiz.

- Doutor Carlos Sampaio. Seu perdão veio com a minha vitória pessoal ao longo dos ano. Eu era do interior. Inocente e jovem aqui em São Paulo. Dezoito anos. Não havia me mudado para São Paulo para viver de faxineira. Eu tinha sonhos. Saberia que humilhações viriam.

Ela falava com doçura, lentamente. Minhas mãos trêmulas. Eu sentado num longo banco de madeira próximo a um pequeno jardim do albergue. Me lembro minhas pernas retas. Eu tentava parar os espasmos musculares. Ela me ajudava. Ora segurando as minhas coxas, ora as minhas mãos. E continuou.

- Eu me senti humilhada. No mesmo dia fui demitida.

- Já naquela época a cacaína me dominava. Nem me lembro mais o motivo. Mas sei que gritei com você. Chamei o supervisor da limpeza. Você saiu com ele. Minutos depois,  já era passado para mim aquele episódio.

- Para mim foi o início do meu presente e do meu futuro. Marcou para sempre a minha existência. Esta mesma droga que o consome hoje foi a que me acusou de roubo e mudou a minha vida. Eu achei desproporcional, claro. A empresa para a qual trabalhava preferiu me mandar embora pagando todos os meus direitos. E ainda fizeram questão de me fazer mais um pedido como compensação.

- O que pediu?

- Que me pagassem a faculdade de Assistente Social.

- E o que roubou de mim?

- Nada, me disse ela. Na verdade, eu peguei vários papelotes sobre a mesa, enrolados em papel simples. Eu humildemente perguntei onde guardar e o senhor me disse para não mexer naquilo. Você colocou todos dentro da gaveta. Fechou com a chave. Em seguida me perguntou do seu relógio. Chamou o encarregado. Disse que talvez eu havia roubado...

- E você disse a história dos papelotes?

- Sim. No RH da emopresa. Eles compreenderam. Precisavam do contrato com o hospital. Para eu não acionar a justiça, me orientaram e me ajudaram a estudar. Eu sempre fui muito esclarecida.

- Eu devia ter cheirado já muito. Que ano que era.

- Eu entrei na faculdade em 1989. Foi em 1988. Em setembro.

- Meu filho caçula tinha três anos. E eu nem o conhecia direito. Nunca peguei meu filho no colo. Sempre quis que esta criança morresse.

Ela me olhou sem expressividade.

- Este mesmo filho, eu o salvei dois dias atrás de duas paradas cardíacas e duas convulções. O mal que fiz a ele foi o mesmo mal que eu fiz a você. Falta de amor. Somente pensava em mim.

- A mim, indiretamente, me fez um bem. Pelas vias tortas e pela falta de amor com o próximo, claro. Hoje sou Assistente Social e feliz na profissão.

- Eu não presto.

- O vício não faz o senhor se prestar a você mesmo e nem aos outros. Seu vício é igual a outros. Ou se liberta ou morrerá.

- É difícil. É quase impossível.

- Vou cuidar do senhor aqui, doutor. E vou entrar em contato com a sua família.

- Não. Por favor, Shaianne. Não faça. Prefiro ir morto a drogado. Quero superar tudo sozinho.

- Aqui não é clínica de reabilitação. Mas o farei ficar aqui dia e noite. Falarei com meu supervisor. Ele me entenderá.

- Que história, doutor Carlos Sampaio.

- Fiquei três semanas. Convulsões, tremedereiras, boca seca, vômitos. E a Shaianne comigo todas os dias e algumas noites, nas primeiras noites. Aos poucos recuperava meu corpo dependente e o controle de minha mente. Uma vez drogado, sempre drogado. Passou a ser meu lema. A única coisa que eu não precisa mais era de uma carreira de pó. Cada dia era um passo para a libertação...

- E três semanas depois?

- Eu teimosamente fiz o mesmo percurso a pé de volta para casa. A minha roupa branca não havia sido lavada. Cheirava mal. Precisava voltar da mesmo forma que saí. Disse para a Shaianne inúmeras palavras de agradecimento. Era julho de 1995.

- Eu me lembro. Eu estava aqui.

- Bati na porta...

- E a partir daí eu já sei toda a história doutor Carlos Sampaio.

- Um segredo.

- Qual?

- Quando eu o vi presente aqui em casa, me arrependi de chamar o senhor doutor de pretinho...

- Eu sei. Por isto sempre me chamou de Carlos e depois de formado doutor Carlos.

- Como soube?

- Eu intuí. Um neurologista excelente me diagnosticou com Déficit de Atenção. Meus neurônios agradecem até hoje. Me ajudaram a abstrair. E muito.

Nem mais suco nem mais biscoitinhos. Falei amenidades do churrasco e que Marcela era passado enterrado. Jéssica era meu presente.

- Terminei, ela disse alto da sala de jantar.

- Incrível, comentou dona Cláudia.

Nos levantamos e testemunhamos. Jéssica empolgada.

- Em menos de três horas quinhentas peças? Uau, eu me surpreendi. E calculei rapidinho. Quase 22 segundos por peça. Maravilha.

- Me polpou um passatempo de duas semanas.

Mas no outro dia o doutor Carlos Sampaio recebia de presente da Jéssica um quebra-cabeça de três mil peças. Era da ponte Golden Gate. Ele agradeceu com um jantar uma semana depois para mim, para ela, dona Cláudia. E por sinal, para economizar, foi neste jantar que em uma semana ficamos noivos.

Aprendi a amar emocionalmente quem me amava e me queria ao lado. Tinha que ser com a Jéssica. Não perdemos tempo, aliás, e logo engatamos um filhos, como já disse. Nesce este ano, em 2016.

Julho de 1995, por sua vez, renasceu o doutor Carlos Roberto. Eu não vejo a hora de ser pai. Posso dizer que Cotonete teve outro nascimento também em 1995. Pai e filho viraram inseparáveis desde então. Foi então que em outubro de 1995 a ideia de saltar se paraquedas foi realizada. E, claro, merece ser narrada a seguir.

Nos despedimos e rumamos para o apartamento da Jéssica. Antes, porém, na própria Salim Farah Maluf farol alto em nossas caras. Era k ROTA.

- Sai do carro. Mão para cima.

Cinicamente, Jéssica riu. Abriu o vidro. Estendeu as mão femininas. Eu fiz o mesmo.

- Agora sai com as mão visíveis. Ela saiu tranquilíssima. Eu sai imaginando o mundo que sempre se repete.

Qual o susto.

- Dona Jéssica?

Um dos seguranças pessoais dela para ocasiões especiais.

- Tenente Pereira, tudo bem?

- Quem é o senhor?

- Meu noivo.

Pediram desculpas. Para a su segurança. Vão com Deus e mais blablablá. Claro que muitas vezes ela chamou o Tenente Pereira para nos acompanhar, inclusive no cinema na Rua Augusta. Eu sempre digo a ela que era muito banada e abusada.

Depois deste incidente, Radial Leste, Consolação, Rebolças e Henrique Shaumann. Entramos. Biologicamente inexplicável fiz sexo com ela semelhantemente à primeira vez de um adolescente. Ela gostou. Ela delirou. Ela queria ser mãe àquela noite. Ela queria que eu fosse dela. Sim. Temos que querer algo para ter. Se não conseguir, senta e chora que uma hora passa.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Capítulo 5

- Quantas?

- Duas paradas. Sob cuidado agora. O doutor Carlos monitora constantemente. Não sai do leito em momento algum.

Eu ouvi o telefone tocar. Dormir aquela noite era um luxo dispensável. Por mais que me sentisse entre núvens no conforto no leito, do colchão, do que me cobria, do espaço do quarto do Cotonete, a mente inquieta e preocupada desfaz o prazer do corpo para a angústia da alma. Despertei muito facilmente com o primeiro telefonema. Dona Cláudia, por sua vez, não foi ao seu quarto em momento algum. Permaneceu na sala, encostada, sentada ou deitada no sofá.

- Como está o Cotonete, dona Cláudia?

- Carlinho, uma hora da manhã. Logo tem que ir para a escola. Volta a dormir.

Abaixei a cabeça em respeito. Retornava para a cama. Minha vontade era ficar lá ao lado dela e dormir no seu colo. O telefone tocou.

- Meu Deus. Mais uma parada cardíaca? Eu vou aí.

Do outro lado da linha disse que não seria necessário. O doutor Carlos não deixava ninguém, senão ele mesmo, cuidar e monitorar o filho. As massagens cardíacas, oxigenação contínuas e falava "na minhas mãos não, Luiz". E o coração voltava a bater regularmente com a ajuda de adrenalina direto no músculo cardíaco.

- Dona Cláudia. Posso ficar na sala com a senhora. Me sinto culpado por tudo.

Ela estendeu os braços e eu fui lentamente ao encontro dela. Na verdade, tínhamos o mesmo tamanho. Nossas diferenças eram na cor e no meu volume corporal. Sentia nossas almas tão próximas. Ao me abraçar colocou-se a chorar. E de repente desabafou:

- Carlinhos, somente estou aqui em casa, com uma enorme dor na alma, porque o pai do Luiz precisa amar seu filho, independentemente de como ele é. Existem amores que escolhemos. Existem amores que são incondicionais. O meu Carlos precisa amar seu filho incondicionalmente. E o verdadeiro amor vem com a dedicação, com o sacrifício, com a entrega.

Eu não sentia a mesma verdade daquele amor. Meus pais sempre muito cuidadosos. Dona Cláudia me pediu para deitar no sofá. Estendi meu corpo sobre ele. Certa timidez ainda. Flexionei um pouco as pernas. Joelhos para o alto. Barriga para cima. Aos poucos virei em leve posição fetal. Minha cabeça nas pernas de dona Cláudia que começou a passar os dedos no meu cabelo duro. Por alguns minutos e tempo suficiente para eu dormir feito pedra. Me disse ela que o telefone tocou mais duas vezes para dar boas notícias do Cotonete. Sem mais convulções, sem mais parada cardíaca. O doutor Carlos Sampaio em momento algum longe do leito do filho. Foi assim até as 6:00 quando ela me despertou.

- Bom dia, Carlinho. Hora de acordar para ir para a escola.

Era doce a voz da dona Cláudia me despertando. Em segundos obedeci. Pediu para que eu tomasse outro banho e na minha vida toda nunca havia tomado um banho à noite e outro logo pela manhã. Fui ao banheiro. Outra toalha tão macia tanto a da noite anterior. Limpa. E nova. Não me esquece o cheiro tão perfumado. Não entendia se certo ou errado. Não tinha julgamento. Tinha obediência. Talvez o que de errado mais fiz nesta noite na casa dela foi demorar mais de quinze minutos no chuveiro. Tanto à noite quanto de manhã. A água era forte. Eu não resistia. Ao sair e me secar e botar a roupa para a escola, o café da manhã pronto pela Fátima. Não se espantou minha vizinha da favela. Acho que dona Cláudia a tinha confidente em tudo. Havia muita cumplicidade entre elas.

- Carlinho, toma seu café. Deixo você na escola, conforme sua mãe pediu e vou ao hospital saber do Luiz Gabriel.

A mesa farta e bonita com sucos, frutas e bolo. Me encheu o apetite. Como bem. Comi feliz. Não sabia e nem sei explicar. Era novo para mim, a despeito das circunstâncias trágicas. Depois descemos para o Ford verde dela espaçoso. Fui no banco da frente. Senti-me rico. Me deixou na escola e rumou ao hospital. Voltei à minha vida e aos meus com a alma cheia de conflitos para o bem, para o meu próprio bem.

- Pai?

- Carlos, como está?

- Bem. Onde está a mamãe?

- Em casa. Me ligou dizendo que já está vindo para cá.

- E o Babão?

- Dormiu em casa com a sua mãe. Já está na escola.

- E quando vou sair daqui?

- Daqui a pouco uma ambulância vai transferir você para outro hospital.

- O São Luiz?

- Sim.

- Não quero, pai. Estou bem no SUS.

Sem reação. Sentiu o Cotonete os olhos do pai cansados, marejados, humilhados, perdidos.

- Quero ficar no hospital público que é meu lugar. Nem pensem em me tirar daqui, desta porra.

Longe de qualquer outra reação, o pai obedeceu com um beijo na testa do menino. Deu as costas e puxou ar para não chorar. Foi ao banheiro e estendeu mais uma carreira. Cheirou. Uma longa carreira de cocaína. Sentiu-se melhor e mais potente. Mais corajoso e destemido. Voltou ao leito do filho que tagarelava palavrões com uma enfermeira negra e forte. Quase 1,80m.

- Você foi valente, menino. E mais valente ainda foi seu pai.

O doutor Carlos Sampaio entrou cheirado.

- Seu pai não deixou seu leito um minuto sequer e dizia sempre "não nas minhas mãos; não vai morrer nas minhas mãos". Foi de comover.

Assim que retormou, ouviu do Cotonete.

- Obrigado, pai.

Em seguida a dona Fátima entra no quarto. Dividido com mais quatro outros leitos. Geralmente pessoas idosas, nas últimas, esperando os óbitos.

- Filho, como está?

- Bem, dona Cláudia. E o Babão?

- Na escola.

- Pai, obrigado novamente por não sair de perto de mim.

A agitação era explícita. O rosto de um lado para o outro. As mãos apertando os vazios até as veias e os ossos saltarem. Reprimia a fala. Suava visivelmente pelas têmporas. Dona Cláudia passava a mão nos cabelos do Cotonete. Já reconhecia o estado do marido. Era agora esperar o excesso de berros e gritos e ofensas...

- O Babão dormiu em casa hoje.

- Eu sei. Papai me disse.

Ouvir papai era incomum. A afetividade entre ambos jamais existiu entre papai e filhinho.

- Vou para casa descansar. Preciso de um banho. Preciso me desligar.

- Eu fico com o Luiz. Pode ir, respondeu aliviada.

- Mãe, não quero ser transferido para hospital particular. Quero ficar aqui.

- Tudo bem, meu filho. Mas aqui você pode estar tomando o lugar de uma outra pessoa que está urgentemente precisando deste leito para os mesmos cuidados que você está tendo neste exato momento. Você tem direito a um hospital particular. Faça uso dele. E libera para uma outra pessoa que tem mais necessidade do que você.

O Cotonete me disse que se lembrará para sempre desta perspectiva que a mãe dele lhe abriu a mente. Nem sempre insistir em uma opinião é o bem comum. Muitas vezes mero egoísmo e falta de maturidade. Antes de o pai sair para casa, ele o chamou e disse:

- Pai, tudo bem me transferi para o hospital particular. Acho que posso ser mais útil assim.

Chapado, doutor Carlos Sampaio fez cara de indiferente. Internamente aliviado. Não perdeu a ousadia que a cocaína lhe dava. Fez uso dela. Disse que iria para o apartamento e deixou todos, e o filho aos cuidados da mulher. Uma hora depois Cotonete foi trasladado para o São Luiz de ambulância. Quarto privativo enorme e totalmente equipado. Equipe de médico completa. Ressonâncias, tomografia e todos os exames. Mais dois dias internado. Braços e pernas engessados. Saiu perneta e maneta. Não teve visita. De cadeira de rodas, na porta de saída, o Babão.

- Babão, seu filho da puta!

Ao lado, sem perceber, a mãe do Babão.

- Me perdoe, dona Maria.

No Ford verde entramos eu, minha mãe, Cotonete na frente. Me disse dona Cláudia que o doutor Carlos Sampaio estava há dois dias sem aparecer em casa. Ninguém sabia do paradeiro dele. Ligou ao hospital São Luiz, onde ele era diretor. Pediu licença de alguns dias. Porém, foram literalmente três longas semanas sem contato com a família. Dona Cláudia não estranhou os três primeiros dias. Porém, uma semana depois, já em desespero, foi a todos os cantos de São Paulo. Desde boites, a bocas de drogas, ao IML. Inclusive perambulou pelas ruas observando mendigo por mendigo quatro noites consecutivas. Querendo o marido. Entrou em contato com a Glória e nada. Temeu o pior. Suicídio. Desaparecimento. Overdose.

Ao mesmo tempo, convalecente, Cotonete sentiu falta do pai. Demonstrava saudades. Na escola passou a ser mais silencioso. Babão falou com a mãe que disse ser um problema deles. Obedeceu. Pedia autorização para dormir na casa do amigo. Ela concedia. Pelo Cotonete. Pela dona Cláudia.

Era início do mês de julho. Os meninos de férias. Fazia frio. A campaínha toca. Muito mais magra e pálida, se assustou pelo horário, porque não tocou o interfone e porque o filho e o amigo já dormiam. E o susto maior com o trapo humano que aparece na sua frente. Era o doutor Carlos Sampaio.

- Posso entrar na casa da minha família? Me aceita de volta?