REIS-1 8:39
O ano era 1995. Eu estudava na USP, zona oeste, mas morava no extremo da zona leste. Eram duas horas entre ônibus e metrô, ida-volta. Lembro-me que cruzava a Paulista na Consolação dentro do ônibus. Eu olhava pela janela e naquele momento eu chorei. Não creio que alguém reparava. Eu chorei porque não tinha vontade alguma de voltar para casa. Eu saía do meu mundo de estudos para ir ao que eu chamava "pequeno inferno" na minha vida. Morávamos apenas meu pai, meu irmão e eu. A casa um lixo. Uma imundície. Era uma mistura de todos os odores desagradáveis possíveis. Eu vinha da Cidade Universitária, cruzava a Av. Paulista, ia para o Itaim Paulista para viver tortura emocional que eu chamava "casa". Então uma cena ocorreu ao destempero e desespero de minha imaginação. Ao chegar em casa, eu iria gritar pelos nomes de meu pai e irmão. Como eu morava na frente da Av Marechal Tito, assim que eles aparecessem ao portão, eu iria atirar-me na frente de um carro, gritando "é isso o que vocês querem de mim" e morrer em paz. Assim daria fim para mim e deixaria algum remorso neles, porque eu apenas queria estudar e para isso precisava de paz, que não existia. As lágrimas no ônibus me aliviaram um pouco até em casa. Desci no ponto e fui andando lentamente. Muito lentamente. Não queria chegar em casa. Mas os caminhos têm fim. Entrei e lá vinha a sensação de mal-estar. Cruzar SP inteira para viver naquele estado precário. Eu queria ter forças para mudar, mas conhecia pouco de mim mesmo. Era fraco e frágil. Tudo sujo. Pia, chão, fogão banheiro. Uma nojeira. Casa velha. Meu pai e meu irmão dormiam quando entrei. Mais angustiado, fui para algo que eu chamava de quarto. Sentei numa poltrona velha. A vontade de sumir deste mundo, voltava à minha mente. Eu só queria paz externa para estudar. À época ainda continuava ateu - mas sem tanta convicção. Mesmo assim eu tinha uma Bíblia entre meus livros. Diante de mim a minha modesta estante. Olhei para ela e pedi alguma ajuda divida. Qualquer sinal. Voltei meus olhos para a minha estante e o primeiro livro que vi entre as dezenas foi a Bíblia. Joguei com Deus, desafiei Deus, clamei ajuda. Falei sussurrando: "me dê um sinal, uma luz, qualquer coisa para entender meu pai, meu irmão, e a minha situação neste mundo", e abri aleatoriamente a Bíblia nas seguintes palavras:
"Ouve tu então nos céus, assento da tua habitação, e perdoa, e age, e dá a cada um conforme a todos os seus caminhos, e segundo vires o seu coração, porque só tu conheces o coração de todos os filhos dos homens." 1 Reis 8:39
Diante deste tal arrebatamento, não acreditava no que lia, mas eu estava lá, lendo e não podia negar o que lia. Senti pela primeira vez Deus falando diretamente para mim e comigo. Pela segunda vez naquela noite eu chorei. Então passei a compreender melhor meu pai, meu irmão e meu destino neste mundo. Meu pai e meu irmão à época podiam não me compreender, mas eu os compreendia, e não devia julgá-los nos seus defeitos e no que eles eram para mim. Teria que viver e me superar, porque para isso serve a compreensão. Para perdoar os erros das pessoas e seus limites. Primeiro porque eu também tenho os meus erros e limites; segundo porque eu os compreendia naquilo que eles eram. Eu só não desejava para mim. Desde então - há 23 anos - estes versículos habitam em mim quando tenho que tomar uma decisão. Se eu tenho mais consciência do que a outra pessoa, não adianta julgar e acusar. Tenho que escolher o que é menos pior a todos, e geralmente quem tem mais consciência, tem que aprender a ceder. Desde o início Jesus tinha consciência de seu destino, e em momento algum ele contrariou a si e ao Pai. Aliás, somente fui converter-me a Jesus Cristo em 2005. E se me perguntam a que igreja eu frequento hoje, eu não sei responder. Sei qual Deus falou comigo naquele dia. Sei a que Cristo adorar. Sei que ninguém vai ao Pai senão por Jesus Cristo. Sei que estamos no mundo para seremos filhos de Deus, por meio de Jesus; para amar ao próximo; e que acima de tudo, Jesus quer de nós misericórdia e não sacrifício. Tive misericórdia de meu pai, meu irmão, de minhas ideias e de mim mesmo. Deus desde então vem me sustentando. Porque sempre digo "que seja feita a sua vontade". E aguardo.
Flavio Notaroberto