Há uma cena do filme 'Embalos de Sábado à Noite' em que o personagem do John Travolta pede desculpas à sua mãe pelo filho arrogante que ele tem sido. A mãe reage inesperadamente, com indignação. "Imagina, meu filho! O que é isso? Você tem sido um ótimo filho!" Ele explica que sabe que não, mas que tem amadurecido. Quem assistiu ao filme, irá se lembrar. Bem, incrivelmente o amadurecento faz as pessoas terem autoconsciência do que elas eram e de como elas se comportavam. Não fosse assim, elas não amadureceriam. No filme, ele fala para a mãe que quer mudar, quer ser diferente, quer ser menos arrogante, parar de usar as pessoas, ser mais maduro etc. Acho que no fim da cena, ela oferece mais um pedaço de bolo para ele. Ele aceita.
Indo comprar pão agora à tarde, veio-me à cabeça esta cena. Lembrei-me de mim mesmo quando eu amadureci. Eu tive autoconsciência de meu papel nesse mundo aos dezessete anos. Faz tempo. Desde então, perdi parte da inocência. Entrei em depressão no ano seguinte, porque a realidade cruel passou a ser implacável em mim, como é a quem abre os olhos e não tem preparo emocional para absorver tanta realidade. Vivi quatro longos anos depressivo. Estes anos ao mesmo tempo existiram e não existiram para mim. Bem, ter autoconsciência é algo que traz tristeza. Tanto que no filme eu acho ser uma das cenas mais tristes, e para a mãe dele também.
Reconhecer-se amaduro exige forte atitude de humildade. Inclusive causa espanto nas pessoas.
Particularmente, uma pessoa arrogante sendo humilde incomoda minha interpretação da personalidade humana. Deve ter incomodado também a mãe do personagem do filme.
Nos últimos tempos, eu tive essa experiência de querer ser algo que não me pertence, ou melhor, nunca me pertenceu. Não sou da vida balada, de festa, de exageros, de êxtases. Sempre fui recluso, introspectivo, interessado em viver minhas sensações e emoções particulares dentro de minha mente reflexiva, sem me poluir emocionalmente. Sou mais sério do que minha vontade de querer ser livre. Aliás, sou livre para não querer ser o que não gosto de ser. Ainda mais agora. Gosto dessa coisa simples entre escrever e ler, ouvir música clássica e assistir a filmes e documentários que refletem a existência. Creio que tem a ver com as minhas aulas e com as minhas escritas.
É um processo inicial de desintoxicação emocional deixar de lado o que não se deseja mais. Nada grande coisa, porém. Algumas coisas valeram à pena. Ser menos do que eu me sentia, valeu-me a experiência. Tornei-me admirador de Kant. Aliás, sinto-me filósofo a partir do momento em que entendi Crítica da Razão Pura - em meados de 2016. Desde então, o sentir teve uma dimensão muito significativa para mim. A neurologia atual tem me mostrado em meus estudl sobre ela que nosso cérebro é dividido em diversas partes e cada qual dessas partes altamente especializadas. Usamos a totalidade de nosso cérebro. Eu uni a filosofia kantiana, que é o início da verdadeira metafísica, com os estudos neurológicos e nossa apreensão nesse mundo, e para ser mais específico, as nossas qualia. Foi bem libertador.
Não dá para fingir que não existe em mim o que existe. Posso emagrecer, cortar o cabelo, tornar-me atleta, curtir passeios etc., mas o conhecimento do que eu sei não sairia de mim. Uma vez que foi conquistado por mim através de muita leitura e dedicação. A voz interna em mim é barulhenta. Ela silencia minha voz exterior. Tal como a autoconsciência do personagem do filme, é bom saber quem de fato você é e o que quer ser. Ambas as coisas eu sei. Estava tentando curtir sensações relativamente normais, e foi engraçado e divertido. Eu ria mais do que sentia contentamento. Rir e ter contentamento possuem pouca coisa em comum. O riso é nosso pior inimigo em todos os sentidos. Disse isso aos meus alunos, porque estamos lendo 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', e este Brás Cubas nos faz rir muito como rimos da coitada Eugênia, o coxa flor da moita. Contentamento vem para mim da reflexão e do conhecimento. Gasta-se mais energia. Justamente o que nos mantem alertas e vivos.