Ela veio até mim na distração de minha solidão. Eu estava deitado em casa. Na cama pequena. Distraído, cheio de pensamentos e ideias soltas. Início de noite. Fazia calor como da vez em que sentamos e bebemos e conversamos. Ela começou a surgir entre sorrisos e olhares. O cabelo preto e longo, num corpo pequeno, fino, elegante. A imaginação passou a palavras soltas, sem som. As palavras eram as imagens de sua boca sorrindo. Cenas e mais cenas desconexas cuja lógica era meu anseio de pensar nela, mesmo porque nosso contato limitou-se a meia dúzia de falas pessoais e a apenas um momento de aproximação, lado a lado, sentados, claramente com ardor por toques, que gerou olhares diferentes de minha zona de conforto racional e iniciei a amar. Pude humanizar-me. Ela amadureceu mais ainda a mulher que se escondia no jeito pueril e inocente e solto das meninas-mulheres exigentes de um amor maduro e acolhedor. Não um amor para sempre. Mas um amor para si até quando durar.
No boteco, em um roda de cerveja, mais duas pessoas, ideias desde filosóficas, políticas, alternando seriedade e comicidade. Sei fazer rir. Sei fazer pensar. Sei fazer apaixonar-se. As horas evaporaram-se. As palavras jogadas à mesa, engolidas na bebida e mastigadas com batata frita fizeram o tempo passar como as pétalas das rosas colombianas, que caem, ainda que das mais belas. Compreende meu particular grau de contentamento naquele momento de amar? Depois eu a levei para casa. No caminho deixei de ser menos obtuso. Quando a sós ultrapassei um limite que toda mulher exige que o homem, a quem ela tem curiosidade, ultrapasse para que o recuo parta dela e assim diminui o fogo, o pó turvo da emoção volta à forma inerte e incólume, a água fria imprópria para consumo desacelera o rítmo cardíaco e os papeis do homem e da mulher no jogo de conquista ficam claramente desenhados: eu avanço, ela recua, até o momento em que ela cede e a mim é permitido sentir seu beijo e sua vontade de saber como é minha intimidade. Antes sussurrei em seu ouvido algo que mantenho no devido segredo para minhas próprias neuroses. Ela retribuiu com um sorriso que aqueceu a minha alma; me despertou prazeres; me fez reaprender mais fortemente aquele troço esquisito do amor que sobe e desce. Momentos de uma felicidade expansiva. Depois, certezas de uma felicidade reprimida. Acho natural o movimento no jogo do amor a expansão e a retração. Inflamos na felicidade; retraímos jogados à solidão.
Não posso dar detalhes dos caminhos por onde fui com ela, dos bairros por onde passei com ela, das cervejas que tomamos, das circunstâncias em que nos conhecemos, das ideias dos poucos conhecidos em comum que compartilhamos, do que ela faz da vida e da vida que eu vejo em sua intimidade. Mais vale a certeza da dúvida na arte ao dar existência às impressões na alma do que fragilizar-se na construção do seu castelo de areia sentimental para ser bombardeado com chuvas de invejas. Nem todos vêem beleza nos amores. Amar uma mulher para um homem é um ato individual, respeitado por quem sabe realmente amar. Deve ser semelhante a todos. Quem não sabe amar e nem sofrer acusa os amantes de fracos idiotas alienados prontos para arder em vão. A arte é uma arma e tanto. Imagino quem possui apenas sentimentos sendo obrigado a conviver com eles sem escape. Escrevo. A natureza de quem escreve é a certeza da primeira impressão de quem lê. Está aí meu conforto e meu sossego. O quadro que se olha internamente lendo uma história de amor são raízes ocultas da leitura de suas próprias vivências. Eu olhei para ela e disse:
- Não fosse a circunstância da sua vida, eu amaria namorar você.
Ela sorriu. Quase me convidou para um beijo. Não fosse o boteco onde estávamos... A coragem de beijar pode vir em um boteco. Mas quando o meio é a favor do beijo, explora-se mais o todo da troca emocional. Sem dúvida. Penso, por este motivo, que, de alguma forma, ela considerou como um elogio minhas palavras "amaria namorar você", porque foi apaixonante a harmonia do olhar receptivo dela, dos lábios chamativos, do silencioso laço que as nossas almas nos buscavam. Existem elogios que se faz exclusivamente no desejo e na vontade. Se eu materializei meu desejo, ao menos ela sorriu para a minha vontade com aqueles modos que uma mulher, na sua intuição própria sem palavras, sabe muito bem onde mete os pés. Sem dizer que sentir-se amada, ou desejada, ou querida por quem filtra muito bem as palavras que escolhe assemelha-se aos achados daqueles diamantes preciosos. Fui ourives e ela um bem valioso, uma pedra rara, uma relíquia emocional.
- O amor acontece, eu escrevi a ela semanas ou dias depois deste encontro.
Neste momento houve silêncio absoluto. Não nas palavras. Continuamos a nos corresponder normalmente. Ocorreu que o vazio moldou os contornos do "invisível" no que ela escrevia para mim. Quando uma, entre duas pessoas, a conversa gira em torno do clima quente ou frio na cidade de São Paulo há duas possibilidades: primeiro a aproximação; segundo o distanciamento. Tanto em uma como em outra situação o espírito oculto aparece, o espírito "invisível". Geralmente ele é capaz de entrar em nosso ser. Dizer as intenções. Fazer-nos reapreender. Convencer-nos de permanecer ou sair. No meu caso, eu saí. Saí porque no fundo a vontade dela era que eu permanecesse. Há realidades que são mais sensíveis do que nossas verdades. Em seguida, voltaram minhas palavras a ela "não fosse as circuntâncias de sua vida, eu namoraria você." Não a namorei. Mas eu a enamorei.
Ainda me peguei refletindo e escrevendo sem os detalhes da alma plena. Antes de dizer que o amor acontece, escrevi algo pensando nela. Benefício da arte, como disse, que veio assim:
Alguma vez o amor já terminou em seu coração? Provavelmente não. O que ocorre é que amores aparecem aos montes e se sobrepõem. Ainda mais amores espirituais em que a alma gosta demais da presença daquela outra alma. E não tem idade nem beleza. Há vontade de estar junto e ser lembrado constantemente para não ser esquecido. Uma foto. Um áudio. Uma canção. Um verso. Uma palavra. Admito, como alma aberta, que meu coração vive agora de um incipiente amor, sem que nossas almas se comuniquem com ternura e afeto, ainda que se busquem. Parece que não há atropelo entre nós. Nem sei quanto tempo durará. Porém, ele, este amor, me parece tão meigo. Eu tenho para dar o que ela quer receber; eu quero dar o que eu tenho; e ela quer receber de mim o que eu tenho. Um vício positivo. Uma comunhão. Parece sim uma troca. Eu gosto deste sentimento de troca. Gosto de sentir, aliás, coisas boas. Há momentos que saber os atalhos da alma causa um amor mais arrebatador do que a beleza e a fortuna da riqueza material. Somos humanos. Carentes de essências para viver acolhidos em nós mesmos. Podemos comprar o mundo e olhar e ter as perfeições mais lindíssimas. Quem, no entanto, aguenta a solidão na escuridão de um quarto sem uma troca de essência? Neste momento, considera-se a essência, e é neste momento também que as almas tem valor. É bom gostar. Sentimento que se renova e nos renova. Eu estou gostando, por hora, de uma simples ideia que entendo amor. Uma ideia em minha alma. E sei que está gostando de mim. Faz parte. A vida caminha assim. Desde que haja bontade reciprocamente, eu creio que seja válido o sentimento.
Fez sucesso entre quem lê o que escrevo. Falei para ela. Ela o leu. Refletiu a respeito. Expliquei o contexto. Senti mais uma vez aquela invisibilidade comum a quem ama e não pode nem dizer, nem crer, nem admitir, senão reprimir. Tomei a minha coragem frágil e lhe revelei:
- O amor acontece.
Em seguida pedi algumas desculpas tamanho o cuidado que temos de ter ao entrar pelas portas dos fundos na vida das pessoas quando começamos a amar. Amar é um convite para ser e estar presente nas mais íntimas trocas que a dependência emocional gera nos amados. Não acho lamentável depender emocionalmente de alguém. Acho lamentável transformar o amor não correspondido em ódio eterno, que é a dor mais cruel se quem ama, suportável apenas pelo movimento de vingança que gera a maior das calamidades na raça humana. Como eu enfrento o ódio do amor não correspondido? Não meu ódio, porque não o tenho. O ódio de quem o tem. Bem, eu escrevo e distancio-me. O tempo ajuda a pessoa rancorosa a misturar outros ódios e amores na sua alma. Amores e ódios compartilhados aplacam a doença de quem não controla bem sua vontade de escravizar o outro nos seus desejos, e o sentimento de rejeição que o amor não correspondido gera.
- Eu compreendi, disse ela, e complementou com generalidades daqueles vazios, fazendo-me crer que "amar é normal" e "não existe o que se desculpar."
Compreendi a invisibilidade muito mais latente. Era de certa forma amado e eu amava. Mas a tal das forças invisíveis repulsavam nossas almas neste momento quase mudas, senão sussurros e murmúrios íntimos de quem não tem muito o que fazer. Fiz-me como sempre dos momentos em que vivo e ela continuou vivendo seus próprios momentos. A distância das ideias começaram a ser diferentes, os recortes dos assuntos do tempo, da política, da economia, da vida real do Estado de Direito minaram aquele campo fértil cheio de vida e amor esperando as flores, em um conjunto maravilhoso de flora pintado com o pincel de nossos corações, com tintas de nossas expansivas emoções. No campo aberto do futuro amor correspondido, botamos muita ideologia, ruas agitadas e avenidas largas, poucas praças repletas de concreto, nenhum parque, e milhares de prédios burocráticos onde cada emoção passou a ser dividida por dezenas de andares e cada andar em centenas de repartições e cada repartição um chefe calculista fiscalizando a existência dos subalternos que gerenciava cada emoção dividida. Assim, a ternura não teve mais acesso ao carinho; o encanto deixou de lado o acolhimento; a sedução era vigiada exclusivamente pelo chefe mais ignóbil de todos os chefes. Os sentimentos reprimidos fizeram-se uma cidade consumida pelo consumo e o único bem que circulava era o interesse pelo dinheiro. O amor ficou lá, dividido em milhares de pedaços, no último andar de cada prédio. Ainda que se chegasse a um deles, era uma parte pequena, que por viver sem as outras partes, preferia assim, manter-se sozinho, na espera da solidão que visitava a todos diariamente, a todos os sentimentos com a mesma intensidade de solidão em cada um. Sem o amor, sentimento algum tem vida própria. Esquisito. Mas fiel à realidade de quem ama.
Na distração quando ela veio até mim em imagens entre sorrisos, encantos, seducação, carinhos e toques imaginados, na noite quente, eu vi que o amor acontece mesmo e da forma mais distraída possível. Gosto de amar. Amar expande. Andar amando alguém é preferível ao ódio vingativo. Uma hora o mesmo amor acontece. Uma hora acontece amar e ser correspondido. Uma hora o amor acontece.