segunda-feira, 23 de novembro de 2020

poema

Foi no seu olhar e no sorriso.
Havia seu andar calmo e lento.
Seus dentes lindos, precisos,
Brancos, e pele morena e bela.
Seus soltos cabelos ao vento,
Beijando a brisa do mar dela.
De repente me vi apaixonado,
Vi-me refém do que acredito.
Respirei sozinho e profundo
Meu amar solitário, em que me via.
Disse a mim mesmo que valeria;
Vale muito a pena sofrer e feliz,
Espalhandi versos cheios de alegria.

domingo, 1 de novembro de 2020

Sua Versão

Os dias foram infinitos, mas tiveram um fim. Machucou seu olhar permanentemente e ela nada mais disse a ele. Ela teve de manter o silêncio dos lábios inchados, dentes quebrados, soluços por refazer. Ela andou três quilômetros sozinha, por quase duas horas. A noite estava fria e úmida, antes de conseguir ajuda.

- Preciso ir, preciso ir, preciso ir.

Escapou sem sentir da dor do braço esquerdo cujos ossos estavam partidos. Mesmo assim, pendurados, Sílvia arrastou o corpo pesado, mas esquálido de menos de cinquenta quilos, longe do sítio.

- Se você for, você morre, ele a ameaçou.

- Rogério, por que você está fazendo...

Sem terminar, ele enfiava o dedo na sua garganta para sufocá-la com o ar de seu desespero, sem pânico.

- Vai ser seu momento, Silvia. Vai ser seu momento.

Pudesse contar, do primeiro olhar à faca no peito de Rogério, foram nove dias e sete horas. Os minutos entraram no desespero do hospital, na cama, da UTI, quando foi encontrada no chão de terra em Carapicuíba, na Estrada Terra Rocha. Sílvia recobrou a consciência, do som do leito, no Hospital Geral, e voltou a acordar de si mesma cinco dias após, restabelecida, braço imobilizado, hematomas salientes, lábios saturados, dentes desfeitos permanentemente. Mais dois dias teria alta e antes de sair deu depoimento ao Sérgio, da equipe de investigação:

- A gente se conheceu no Morola, um bar em Perdizes, em São Paulo. Início de balada, umas dez da noite. Ele era uma pessoa bonita, muito bonita. Não foi a primeira vez que saí com estranhos na balada. Mas vai ser a última. Umas cinco da manhã fomos juntos. Dei tchau a Raquel e a Paula. Entrei no seu carro. Não posso dizer que estava bêbada, mas quando entrei no carro, apaguei e deixe o Rogério me levar, e não reparei que fui para Carapicuíba. Era um sítio. Só mesmo aqueles sons de mato, de quando vamos para o sítio. Ele desligou o carro e apagou o farol; desceu. Eu abri a porta. Quando saí, senti um tapa forte no ouvido, sem entender nada. Juro que imaginei que sonhava, que uma árvore caiu em mim. Fui direto para o chão. Parecia um som que dilatava no ritmo do meu coração. Então, tomei mais chutes na cabeça e na barriga. Foi quando não me lembro mais nada, senão amarrada numa cadeira. Passei a língua na boca. Meus dentes quebrados. Ele estava sentado, olhando para suas mãos. Ele as abria e fechava, numa frequência lenta. Eu perguntei o que estava acontecendo. Ele me olhou. Um cabo de rodo ao lado dele, no chão, foi que quebrou meu braço direito. Ele se ergueu e do chão pegou o rodo. A um passo de mim, levantou e bateu de uma vez. Ouvi o estalar de ambos, do cabo e de meus ossos. Eu não entendi nada, doutor. Ele não sorria, nem falava nada.

- Se lembra quantos dias ficou lá?

- A partir do segundo, não tinha mais consciência de mim mesma. Era torturada ao longo da noite. Pela manhã, ele parava e saía. Me deixava uma garrafa de água de dois litros em cima de uma mesa com um canudo próximo da minha boca. Eu bebia a água o dia inteiro. Não sentia dor, doutor. Não sentia dor. Parecia que sonhava.

- Como escapou?

- Eu o matei.

- Como?

- Uma faca.

- Explica.

- Os dias iam deixando as cordas mais frouxas. Tentei escapar antes de ele chegar. Mas foi quando ouvi o carro que consegui soltar-me dos laços. Esse braço esquerdo inútil. Saí da cadeira, quase arrastando e fui na cozinha. Uma faca de cabo marrom de madeira, pequena, mas afiada e pontiaguda. Voltei correndo, o mais rápido que pude, para sentar na cadeira. Tentei jogar as cordas de qualquer jeito para fingir presa. Ele entrou, acendeu a luz e me viu, cabeça baixa. Chegou perto de mim. Me segurou pelos cabelos. Então a corda caiu. Ele sorriu feito o capeta e me deu dois tapas na cara. Minhas mãos para trás. Não sabia com usar a faca, nem quando usar. Ele me chutou no peito e fui cair cadeira abaixo, de costas, e a faca na minha mão direita, escondi no peito. Eu pedi água, água, água. Ele me trouxe água e jogou na minha cabeça. Água, eu insistia. Quando ele tentou levantar minha cabeça e me colocar água na boca, com a mão direita enfiei com todas as forças a faca no peito dele, e seu sague se misturou com o meu. No mesmo momento ele ficou branco e desabou em cima de mim. Consegui tirá-lo de cima. Tentei rastejar. Mas a realidade caiu de vez sobre mim. Apaguei. Instantes depois, eu desperto. Olho para a cena. Vem então o primeiro sorriso dele quando nos conhecemos até aquele momento. Uni qualquer possível força e caminhei, caminhei, caminhei até uma estrada. Me lembro de quando ainda tive uma pequena recordação no quarto do hospital até dois dias atrás.

- Sua história está envolvente. Há apenas um detalhe. O Rogério não morreu. Além de não ter morrido, a casa dele em Carapicuíba é monitorada por câmeras e sua história é imaginativa, mas não diz nada do que aconteceu mas imagens. Na verdade, você vai sair daqui direto para a Penitenciária Feminina, e ao longo da investigação você e seu advogado terão acesso a tudo.

- Bem, ao menos eu tentei.

sábado, 24 de outubro de 2020

Emoções

Já pensou uma realidade futura em que seus momentos mais importantes devem ser compartilhados com o mundo como se não fossem apenas seus? Na verdade, sempre fomos assim, nós, a humanidade. Vivemos esse presente e nossos antepassados também. Todas as nossas emoções apenas têm sentido diante do olhar do outro. É muito prático para a nossa vida entender que não somos jamais ilhas emocionais. Não importa o que você sinta nesse momento, sua emoção (o que inclui ansiedade!) vem sempre de uma outra pessoa, outra coisa. Como somos nós que sentimos, parece uma verdade nossa, que pertence à nossa realidade, e ninguém tem culpa. Porém, se começarmos a colocar em cheque essa nossa crença pessoal, atingimos o início da paz interior, de não deixar pessoas tóxicas nos devorarem, e não permitirmos mais as pessoas nos atingirem. Afinal, todos somos atigindos pelas pessoas. É a nossa falta de consciência de que não temos culpa de sentir, e que é a coisa mais natural do ser humano, que nos leva a reações muitas vezes autodestrutivas. Então, todos nossos sentimentos são sentidos por nós, mas por causa dos outros. O negócio é sentir e tentar não se culpar por nada que seja puramente negativo. E olhe que essa reflexão não vale para narcisistas, nem para psicopatas e sociopatas.

domingo, 18 de outubro de 2020

vergonha alheia

Há um espírito de vergonha alheia mais intenso. Vergonha das pessoas do que de si mesmo. Vergonha de uma imagem, que diz pouco do bastante que as pessoas gostariam de dizer. Na guerra fria de quem somos mais diante do mundo, o espelho é o mundo que reflete quem nos olha. Desejamos o olhar alheio. Diluiu-se a capacidade de ver a nós mesmos. Precisamos da afirmação do outro sobre nossa percepção diante da natureza, que existe para nós. Sem o outro saber que vemos, não existimos para nós. Essa a vergonha alheia. Nesse sentido, não apreciamos pensamentos em palavras, que caminham seu curso desafiando a lei da indiferença. As palavras existem elitizadas por quem as lê. Desafia existir num mundo em constante construção, e traduz o que tem de mais peculiar. Sim! As pessoas desencantam quando querem encantadas por imagens superficiais do que são nos contornos dos sentidos. O lado incrível no universo dos poemas revela-se no impacto semelhante às palavras terapêuticas de nossas angústias e desajustes emocionais. Ler poemas não se vira os olhos para o mundo, porque não são os olhos do mundo. Logo, não há espelho, senão aquele em que o reflexo seja a si mesmo. Essa a vergonha alheia. As pessoas querem aparecer demais, porque não sabem quem são a si mesmas, e existem sem caminhos pavimentados com seu ser.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Práticas Neurológicas

Lendo agora algumas páginas de um escritor americano que adoro, Will Durant, três palavras me chamaram à atenção, das quais duas eu já conhecia e me havia esquecido o sentido, e a outra li pela primeira vez hoje, e o sentido foi intuído. As palavras são "turgescência" (a turgescência da vida); "desmedram" (os modos naturais e espontêneos desmedram); "transientemente" (se o livre-arbítrio é ilusão da máquina transientemente da vida). Turgescer é crescer, inflamar; desmedrar é deixar de crescer, diminuir. E transientemente é brevemente, algo que logo deixará de existir. É mera coincidência os sentidos se aproximarem, ou seja, crescer, diminuir e deixar de existir. O ponto que trago à reflexão é o que as palavras significam. Fazer do desconhecido deixar de ser desconhecido exige um movimento "efeito em cascada" em que um simples passo vai rumo ao outro e assim numa jornada até construir o entendimento que se espera. Nesse sentido é que não existe "genialidade" como se fosse uma entidade abstrata e oca, que participa do gênio sem prática. Já se conhece o estudo das "dez mil horas", ou três anos e meio de intenso treino, oito horas por dia, para que se saia das primeiras notas de um piano ao domínio virtuose do piano. Assim vale a todas artes e habilidades humanas. Veja que algumas genialidades são precoces justamente porque a precocidade tem o tempo da prática, sem outra preocupação humana. Mas se hoje, exatamente agora, não importa a idade, qualquer ser humano que tiver tempo de praticar uma habilidade por oito horas, ao longo de três anos, simplesmente sai do zero absoluto para o que chamamos de genialidade. Evidentemente que sabemos de nossas dificuldades, porque o tempo que temos, em sua grande maioria, não nos pertence. Nosso tempo pertence ao trabalho, à família, aos filhos, às obrigações sociais etc. Não existe um interruptor de 8 horas diárias e ininterruptas que podemos ligar para focarmos na construção de um talento qualquer. Mas olha que irônico. Em 1995 eu fazia USP. Eu tentava ler os textos acadêmicos e me dava angústia por não assimilar nada. Então, intuitivamente, resolvi mudar o jeito. Lia linha por linha, e lia mais de dez horas todos os dias, ao longo de quase dois anos, até 1997. Depois comecei a trabalhar e não tive mais tempo. Mas foi justamente quando comecei também a escrever meus primeiros contos e aspirar à vida de escritor. Hoje as palavras brincam em minha mente como ondas do mar que vêm e vão, esperando para que eu as escreva num poema, romance, reflexão. Eu perco mais tempo em controlar minhas emoções no ato do escrever do que escrever em si. O que é controlar as emoções? Pensar no que se sente e se ele traduz o que se sente, sem ingenuidade. Deseja mudança? É mais fácil, muito mais fácil do que se imagina! Simplesmente praticar. Bem, com isso dá para abrir um belo sorriso e tratar a dificuldade com menos ódio e rancor. Existem dificuldades, claro, mas aí são impedimentos realmente fisícos ou neurológicos, e quando se tem uma das duas, o diagnóstico é rápido. Mesmo assim, as Paralimpíadas e tantos talentos com impedimentos neurológicos provam que a prática cria no cérebro a estrutura para a a habilidade desejada. Para as demais dificuldades na aprendizagem, é apenas controlar o emocional (90% de nós estão em nosso emocional) e praticar, praticar, praticar regularmente. Sim! Somos governados por duas estruturas enfiadas dentro do cérebro: as amigdalas e a índula, que nos dão todas as respostas emocionais a tudo o que sentimos. Aqui é a sede do autocontrole, que vem de nossa mente consciente - mas aí já é outro papo.

- flavio notaroberto -

domingo, 11 de outubro de 2020

Dizer sim para si mesmo

Eu nunca disse "não" aos meus filhos e nunca vou dizer. O que representa o "não" para mim? Poder fazer algo e simplesmente escolher não fazer. Oras, se você não consegue e não pode fazer algo que peçam a você, o "não" é a resposta simplesmente esperada e razoável. Não damos o que não temos. Se me pedem algo, e eu posso, e não importa o que seja, mas eu podendo, sim, faço. A ideia básica de que não se deve ceder com facilidade a caprichos é verdade. Porém, não se resume à relação entre pai e filhos. A pior relação de todas vem daquela narcisista em relacionamentos amorosos, em que a única coisas que unem as pessoas são desejos e promessas de harmonia e sincronização espiritual - no sentido humano, e não religioso. Contudo, uma das partes é narcisista, e usa a outra pessoa através de chantagens emocionais e escravidão ameaçadoras. Viver com pessoas narcisistas pode ser o fim de tudo para a outra pessoa. Aliás, não se deve falar "não" com frequência por um princípio existencial de vida - a não ser às narcisistas e psicopatas. Pessoas afirmativas passeiam pelo mundo e fazem suas histórias. "Não" é uma palavra tão forte e mágica, que o pouco uso dela nos dá a certeza de que seremos ouvidos quando a dissermos - inclusive a nós mesmos. O não também destrói sonhos. Seus sonhos são bombardeados por pessimistas e negativistas, que impõem tantas dificuldades. Geralmente são pessoas que começam com um "por que você quer isso?", e em seguida "ao invés de fazer isso, faça outra coisa", e por fim "não faça isso não". Seguir a vida nesse delicioso rumo existencial exige afirmação, que serve apenas diante da certeza do que sentimos e existimos. A vida é uma afirmação nesse aqui e agora. Existe a dialética da negativa, e na filosofia o termo "negativo" é de bela especulação, do tipo "a natureza da semente é deixar de ser para virar uma árvore" etc - mas nem cuidemos de filosofia. Negar a si mesmo, por isso, é sabotar-se. Afirmar a si mesmo também pode ser uma forma de alienar-se do que se é, e viver iludido. Há pessoas que creem serem amadas pelas pessoas que amam, mas ilusoriamente acreditam que a pessoa não sabe que a ama. Uma ilusão pura de sentir-se especial sem o outro querer admitir que ela é especial. Resumindo, aquela sensação de que as pessoas têm inveja de nós, do que somos, é essa ilusão de que somos especiais. No fundo, temos inveja apenas durante a adolescência - nem na infância sabemos o que é isso, e na fase adulta a inveja se dilui entre o que somos, temos, queremos, precisamos, nos preocupamos e ligamos o "fud#@%#-se". Se um adulto sente inveja, ele não deixou a adolescência. Ligar o processo do "sim" na vida em tudo nos educa a olhar para a existência, e nos tornarmos exitencialistas. Se contemplamos a existência, então apreciamos o que sentimos; se formos indiferentes à existência, não especulamos nada e existimos por existir, como uma flor, o sol, a lua, o infinito, o nada. Enfim, aquele "ser ou não ser" de Hamlet, podemos substituir por "ser e tão somente ser" de nós mesmos, e concluir "eis a mais importante questão". Sou, logo existo.

- flavio notaroberto -

Encontrar Caminhos

Conforme a vida vai se tornando mais perdida, parece mais necessário encontrar caminhos, num ciclo infinito, fadado ao fracasso do vazio existencial. Um dependente químico, paradoxalmente, não tem sua vida perdida. Ele sabe muito bem o que desejar, e vive suas consequências. Um religioso, um ninfomaníaco, um pesquisar científico, um filósofo, um escritor, um captalista, um corrupto e um guru. O leque é quase infinito de opções de encontro de caminhos, e caberá a nós julgar as pessoas e sermos julgados pelo que fazemos nos caminhos que trilhamos. Aliás, quando sabemos, os julgamentos incomodam como ruídos, mas não afetam a melodia do canto. Seguir caminhos é criar tragetórias, e não saber para onde ir nos leva a crises existenciais. A regra da vida é sabermos o que fazer. Um princípio que descobri na prática são as mensagens subliminares e inconscientes que pessoas próximas de nós vão nos enviando constantemente. Se eu citasse o caso de minha vida pessoal, seria bem didático, mas não posso por razões ainda emocionais. Pessoas próximas de nós, bem próximas, quando perdidas, vão nos dando pequenas mensagens, decerto imperceptíveis, acessíveis apenas depois de muita experiência. É um privilégio conhecer pessoas que nos leem as intenções, quando estamos fracos e apenas precisamos de acolhimento e orientação. Sim, eu leio. Sou escritor, que é condição básica para abrir com cuidado a casca da noz humana. Mas muitas pessoas intuitivamente são capazes de sentir e ler, e dar a interpretação adequada a pessoas próximas, que se acham perdidas. Uma pessoa perdida somente pode ser ajudada de duas formas: ou ela encontra seu próprio caminho através de muito sofrimento, tentativas e erros, numa luta interna bastante tortuosa e longa; ou a ajuda vem de fora através de pais, amigos, artistas, professores, psicólogos, que não a livra de passar pelo sofrimento; afinal, não saber o que somos e o que queremos é sofrer. Em ambos encontros com a fonte de seu encontro com sua natureza perdida, é a pessoa que caminha seus passos em seus caminhos. Quando seus passos não levam a si mesma, a pessoa anda e anda, vagueia e vagueia, perambula indefinidamente, e se perde mais e mais no infinito universo de percepções psicológicas de suas emoções, memórias, impulsos, desejos e ansiedades. Quem está de fora e nada pode fazer simplesmente lê as mensagens de socorro; mas, como disse, nada se pode fazer se você não tem acesso à pessoa. Se fosse para resumir o vontade de encontrar-se, poderia propor algo como saber o que a pessoa afinal representa para ela mesma. Ontem um aluno meu me compartilhou versos que ele vem escrevendo. É um pequeno universo existencial rumo a um encontro consigo mesmo, e eu o apoio e disse a ele que quero acompanhar sua tragetória artística, agora no início de seus quinze anos. Eu sou crítico de nossos adultos, porque muitos se veem perdidos e tentam compensar-se na geração anterior a deles, o que parece confundir a necessidade do confronto de gerações, que ajuda a estruturar a razão de viver dos jovens. Mas isso é uma outra especulação. Estamos sendo bombardeados de buscas de caminhos. A arte para mim pode ser o início mais seguro rumo ao encontro com nosso próprio eu. Aliás, a arte pode ser no final de tudo a única e mais bela razão de haver gente.

- flavio notaroberto -

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Origem dos Sentimentos

Não faz sentido algum nossos pessoais sentimentos senão na perspectiva dos outros. Não somos ilhas emocionais e não criamos nossos sentimentos. Eles são criamos e nós e sempre compartilhados. Quem dá siginificado ao que sentimos não está dentro de nós, mas sim fora de nós - ainda que achamos "absurda" tão afirnação. Não importa a natureza do sentimento, nem de sua intensidade. Não apenas pessoas causa em nós sentimentos. Um galho de árvore, que danificou nosso carro, ou sujeira no chão na calçada do nosso vizinho pode provocar sentimentos diferentes, inclusive de prazer. Tendemos sempre a olhar nossos sentimentos dentro de nossa perspectiva - jamais na dos outros - e pensar que somos autônomos. Uma criança se sente culpada mais facilmente porque ela acredita que os sentimentos dela existem por causa dela mesma. Afinal, ela que sente. Nós adultos precisamos fazer o caminho da libertação dessas culpas para amadurecermos, o que leva anos. Olhar para si como indivíduo, por sua vez, depende de como nossa imagem pessoal e autoimagem é e foi construida pelas pessoas. Veja que todo discurso de poder, transferência de poder e potência de poder cativa com facilidade as pessoas, justamente porque ajuda a pessoa a dar um mergulho dentro de si mesma, em busca daquele autojulgamento libertador independente das pessoas. De um modo mais sutil e peculiar, todo artista e a arte trazem em si meios para as pessoas olharem para si mesmas com o poder e a potência necessários rumo à sua libertação emocional e independência afetiva. O que é uma produção artística? Para entender uma arte é interessante saber afinal o que são mercadorias, que se vendem como celuares ou tênis. Um quadro, um filme, uma peça de teatro, um poema, uma música são igualmente consumos, semelhantes a carros, casas, lanches, roupas. Tudo entra no mesmo caldeição do consumo. O ponto que diferencia ambos é a rapidez do sentimento provocado em nós. Repare que quanto mais rapidamente um sentimento de posse se desfaz em nós, menos arte ele é. O contrário diz mais. Quanto mais algo envolve nossos sentimentos, mais arte ele é. O poema e o filme que temos sempre na memória são mais artes do que a roupa que compramos semana passada e já está esquecida. Oras, traumas são emoções negativas, que persistem sempre. Os traumas de séculos atrás eram resolvidos por dois meios básicos: a catarse artística ou a sublimação religiosa. Na arte, o herói poderoso era destruído num trágico fim. Se o herói tinha uma vida pior do que a minha, então não devo reclamar. Isso é a catarse. Na religião, os traumas eram olhados para a esperança na fé, e sofrer se tornava mais suportável. Isso é a sublimação. Bem, eram caminhos rumo à autoconsciência. Hoje está bem mais sofisticados esses caminhos. Na essência, nossas vidas giram em torno de alcançar a autoconsciência, que nos ajuda a lidar com algumas dores e nos faz encaixar e aceitar mais facilmente o desconforto emocional. E novamente, todos os nossos sentimentos vêm do outro. Não inventamos emoções do nada, do vazio, do vácuo. Portanto, antes de cobrar de nós a natureza de nossas emoções, seria bom inverter a lógica do que sentimos e passar a perguntar qual a natureza do mundo e das pessoas que provocam em nós tais sentimentos. Em 100% dos casos, nós nos inocentaremos e em 100% dos casos é o início de todas as mudanças rumo à autoconsciência e libertação emocional, porque não nos culparemos pelo que sentimentos e olharenos com mais autopiedade e autocomiseração para nós mesmos. Aliás, não falo por mim. Essas ideias são puramente o funcionamento do nosso sistema límbico - e vale a pena pesquisar a respeito.

- flavio notaroberto -

segunda-feira, 27 de julho de 2020

D'alva poema

D'alva

Doce, suave e meiga, nova Estrela,
Cintilante deslumbrante sorriso,
Em seu olhar a poesia viu-me encanto,
De seus gestos belos e tímidos.
Diz que a inspiração rompe o momento,
Que dos segundos projetam a eternidade.
Eternizo-me no seu momento,
Porquanto em mim já sinto saudades.
De repente, o acaso parou-me em tal beleza
E deu-me versos buscando a forma desejada.
Sei que à alma a formosura se curva,
E sei que nada mais ilusório no tempo
Quanto amar um lindo angelical sorriso,
Sei sim, mas me curvo na idea amada,
Que a alma tem uma luz que dura tanto.
Se assim há verdade do harmonia,
Não parece erro acertar na verdade,
De que me soa sua belaza, tanta luz irradiante,
Vem da alma, sim, pela dor iluminada.
Se no mundo há sofrimento sorrindo,
Há alegrias também escondidas.
Sinto a alegria de responder à inpiração
De ver, saber, em versos alcançar
O que agora passa a ser uma outra vida,
Nas palavras que de mim rasgam a eternidade.
E de impressões passad a ser uma poesia.

Flavio Notaroberto





quinta-feira, 2 de julho de 2020

Sobre Algodão Doce

Sobre Algodão Doce

Rebeldia em si não existe. Existem estilos. Cada estilo uma identidade e comunicação. Gosto de todos os estilos. Não tento impor meu estilo de vida. Quando muito tento impor falar corretamente meu idioma, estimular a leitura e a escrita, aprender um segundo idioma, ler a alma e intenções humanas. Para aprender e desenvolver isso, existem professores, psicólogos e escritores, e sou um professor. Me lembra o dia em que minha filha pediu para colocar piercing. Surtei no telefone por fora. Dentro de mim, estava em paz. Eu permiti, mas com a condição de que eu a levasse. Marcamos. Eu a levei à Galeria do Rock. Assim foi com a tattoo, que ela queria. Eu só não a levei por problemas bem pontuais. Mas fiz questão de pagar e orientar. Diga-se, uma tatuagem muito bonita. Certa vez um jovem me pediu um algodão doce de graça na festa junima. Bem verdade, uns sete, entre meninos e meninas. Eu perguntava a cada um deles o que entendia ser algo "gratis". "Que não tem que pagar." Eu então reformulei. "Na verdade, você quer comer, mas agora não tem dinheiro". "Isso", me respondeu. Então fazia uma montanha de algodão doce, como fiz a todos. O que eu queria dizer para cada um dos que queriam e não tinham dinheiro era que não há nada "gratis". Tudo possui custo. Não falei nada sobre isso, porém. Eles saíam satisfeitos, comendo, se divertindo e continuei trabalhando voluntariamente na quermesse da escola. Vejo que a rebeldia dos jovens vem pela incapacidade dos adultos de amadurecerem o pensamento dos próprios jovens. O que é amadurecer um pensamento? É, por exemplo, buscar fazer entender que "me dá um de graça" pode ser "estou sem dinheiro e com vontade de comer um algodão doce; você poderia fazer um para mim?" Os adultos maduros fazem na hora. Os adultos que não amadureceram se nivelam à rebeldia de querer ter razão e geralmente não fazem. A cada algodão doce feito, uma luz advinda do olhar das crianças e jovens iluminava o meu obscurantismo de viver. Percebi que não era o desejo do doce no paladar, nem a finalidade do açúcar. Era o sorvete, a montanha, a árvore, a núvem, ou seja, a forma do açúcar, e não o conteúdo. Era a relação de amor alí que nos unia. Ver o belo formato dos milhares de fiozinhos de açúcar traduzia a felicidade de estar lá presente. Nesse sentido, comentei com o professor ao meu lado que se for para fazer algo, que se faça bem e que se transmita a felicidade no fazer. A vida da maioria das pessoas é geralmente cheia de problemas, vaidades, leve tristeza, incertezas e uma pitada de pessimismo. Jogar felicidade para fora em um momento bom para ser feliz (como fazer algodão doce em uma festa!), contagia a memória e cria raízes felizes para os momentos difíceis. Ser rebelde é, de algum modo, destruir raízes, raízes más, ruins, péssimas. Não das boas memórias, que fazem parte de nossas histórias. Ser duro sim, mas jamais perder a ternura. Era isso o que o comunista safado proferia. Para mim a melhor maneira de adjetivar um comunista é com o "safado". Preconceito meu. Eu sou comunista comunista, nem liberal selvagem. Bem, adjetivar um jovem "rebelde" cai muito bem, assim como se for para adjetivar um adulto que seja com o termo "maduro". Para finalizar, Voltaire dizia que ser adulto é saber ter a felicidade da criança, brincar com a criança, sem ser uma criança. Tentei em cada algodão doce seguir Voltaire. Acho que ganhei mais do que horas trabalhadas.

- flavio notaroberto -

segunda-feira, 20 de abril de 2020

O MILAGRE NA CELA SETE


O Milagre na Cela 7 me lembrou um pouco a parte final do filme Forrest Gump. Não vou dar detalhes. Vou me prender às imagens do primeiro, porque qualquer história reflete nossa imaginação particular, pessoal, intransferível. Não interferimos diretamente no que um artista faz, mas somos nós que caminhamos pela arte com nossos passos pessoais que dizem respeito a nós. Se o artista nos engrandece, o contrário é igualmente verdadeiro. As pessoas criam suas imagens da arte por meio de suas percepções. Em parte, O Milagre na Cela Sete me evocou A Vida é Bela também. Então, podemos falar de um padrão, de um arquétipo, e como toda tríade é uma estrutura, esses três filmes dialogam entre si. Há o mundo dos adultos em todos eles, há o mundo das crianças em todos eles. Inverter essa lógica impacta nossa percepção - aquela mesma percepção através da qual construímos nossas histórias. É bom lembrar que nossas sensações fazem parte do que construímos de qualquer saber. Quando sabemos genuinamente, podemos afirmar que sentimos primeiramente pelas sensações, que estimulam nossos sentidos, que constroem as futuras ricas associações abstratas. Uma mente abstrata está acima um grau da mente concreta. Em O Milagre da Cela Sete a função da abstração humana sugere um estudo à parte, mais especificamente no momento da criança escondida embaixo da cama. Então, O Milagre da Cela Sete está em qual categoria predominante? Sentir, perceber, abstrair? É da natureza filosófica humana (metafísica) esse outro tripé, e por esse motivo arquetípica. Se até pouco tempo atrás os estudos psicológicos e psiquiatras eram reflexo do que dizia o comportamento humano, hoje o comportamento humano tem  alguma raiz neurológica certa e já mapeada. Por esse motivo, o que não pode faltar em muitas das reflexões de comportamento humano nos dias de hoje são as descobertas da engenheria do cérebro. Como o cérebro funciona? Esse mistério tem sido revelado com tanta força a ponto de especular-se que os mistérios são respostas simples, ainda que ricamente sedutoras saber que no ser humano a materia milagrosamente "pensa" sobre si mesma! Já é mais do que comprovado que toda resposta sensitiva está no cérebro - não há um vácuo onde o sentido habita. Nesse sentido, a capacidade e a intensidade de sentir não teriam outro berço, a não ser o neuronal, o cortical, e outro dilema surge no filme O Milagre da Cela Sete, que é natureza do inato (nature) e a natureza do adquirido (nurture). Parece viagem, certo? Mas a lógica está na construção do texto. Se iniciasse afirmando que tudo se resume às nossas percepções das sensações pelo sistema nervoso periférico e central, não seria uma reflexão sobre o filme. É do filme que se fala, e filme é arte e a arte busca expandir, transcender, revelar o oculto, o subentendido, como elebora António Damásio, retórica e precisamente, a questão "como os seres humanos vieram a ser, ao mesmo tempo, sofredores, mendigos, celebradores da alegria, filantropos, artistas e cientistas, santos e criminosos, senhores benevolentes do planeta e monstros decididos a destruí-lo? A resposta a essa questão certamente demanda contribuições de historiadores e sociólogos, bem como de artistas, cuja sensibilidade costuma intuir os padrões ocultos do drama humano; além disso, requer contribuições de vários ramos da biologia." Eu destaco o trecho "artista, cuja sensibilidade costuma intuir os padrões do drama humano". Não apenas O Milagre da Cela Sete, nem o filme À Espera de um Milagre, nem a prisão imaginativa de Alice no País das Maravilhas, mas toda arte tenta abrir caminhos rumo à sua realização na mente das pessoas. Já as lágrimas são pessoais, reflexo de nossas dúbias fraquezas e fortalezas. Eu não chorei no filme, e meus filhos sabem que choro muito facilmente. Não é raro minha filha falar "olha lá, papai vai chorar" quando testemunho algo que ela sabe tocante para mim. Talvez, para terminar, nossa realidade tem nos anestesiado da arte. Essa nova realidade de confinamento. O luto coletivo dessa guerra silenciosa por que passamos é estranho. Não ouvimos movimentação de tropas, nem bombas, nem aviões e tiros, que seriam objetos concretos para nossa angústia e reais lágrimas. Todos os psicólogos sabem que sensação e comportamento sem objeto é neurose, esquizofrenia, síndrome do pânico etc., e as consequências naturais para o indivíduo são enormes. As lágrimas na arte é um objeto catártico. Por fim, essencialmente pela catarse, vale a pena ver O Milagre da Cela Sete. Se chorar, melhor ainda, e sei que você vai chorar pela narrativa simples, bonita, direta, emocionante. Chorar hoje alivia e nos justifica. Mas voltaremos a sorrir, porque "fico com a pureza das respostas das crianças; é a vida, e é bonita, é bonita."

Flavio Notaroberto

terça-feira, 14 de abril de 2020

conto maos dadas

(Escrito agora)

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário enconstar na dele, por uma, duas, tres vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via o quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor não se viver o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizasos, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é dolososo. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -

terça-feira, 31 de março de 2020

conto 111

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário enconstar na dele, por uma, duas, tres vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via o quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor não se viver o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizasos, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é dolososo. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -

quarta-feira, 11 de março de 2020

A Entrega

- Que entende por "entrega"?

- Ano passado fiz trabalho voluntário, primeiro domingo de cada mês. Seis horas. A Casa de Repouso Sã, bem próxima de casa.

O entrevistador reparou na gramática. Gostou. Sussurrou mentalmente 'casa próxima de casa'. Os pequenos detalhes são essências delicadas.

Era um privilégio para ele. Há dois anos entrevistava. Sentia. Fingia. Manipulava nos detalhes. Raríssimas vezes se enganou.

- Juliano? E sobre entrega?

Ele tinha feito a barba de manhã. Passou a mão macia no queixo, amassiando seus pensamentos. 

- Minha vida foi uma entrega. É a minha virtude que carrego comigo. Não algumas horas. Nem algumas semanas. Uma vida de entrega. Uma existência.

Havia seis candidatos na sala, mais o entrevistador. O destino ou o acaso  deixou Juliano por último. Bateu a mão direita na perna cruzada. Abaixou a cabeça por um segundo para recordar. E voltou em instantes, instantes dos longos wanos de sua curta vida.

- Entregar-me, disse, foi a necessidade de meu sacrifício ser maior do que meu amor. Minha primeira entrega, de que me lembro, foi aos três anos, um carrinho, pelo portão de minha casa. Desde então percebi como eu precisava daquele sentimento de ser útil. Descobri o amor assim. E amar teve a dimensão dos relacionamentos humanos, com a natureza, com os animais e por fim comigo mesmo. Vivo contemplativo hoje. Vivo feliz. Vivo para a felicidade. Não vivo, no entanto, para o amor como fonte de egoísmo. O sacrifício gritou em mim. Eu o ouvi. Gosto de nesta passagem saber o que posso fazer para o outro.

- Você se expressa muito poeticamente, Juliano - interrompeu o entrevistador.

Os demais candidatos concordaram com o olhar.

- Continue, por favor.

- Uma vida. Uma vida fazendo o que deveria ser feito. Neguei o amor dos jovens e dediquei-me ao cuidado maduro. Quando digo negar o amor, falo que neguei a mim mesmo; e maturidade expressa levar em consideração o outro. Já a poesia é a herança inconsciente de meu amor. O meu primeiro e verdadeiro amor... Sem amor e sofrimento não existe solidão; sem solidão não existe o nosso momento individual; e sem sabermos quem somos, seremos um tanto que egoístas, achando que temos o mundo.

Ao final, Juliano não foi o escolhido candidato. Não imediatamente. Seis meses depois, o MacDonald's o chamou em função da enorme rotatividade. Juliano aprendeu que entrega em inglês era delivery. E foi trabalhar neste setor atendendo os pedidos.

Mas Juliano é amado por quem o conhece. E vítima de inúmeras paixões. O encanto.

- flavio notaroberto -

Antonin saiu para comprar fumo para o pai. Tinha uma nota de cinco. O vendeiro mediu tamanho do fumo e cortou sem embrulhar. Uma distração, porém, de um relincho forte lá fora e berrro de homem fez que Antomin devolvesse a nota pro bolso, sem malícia e má sorte. O vendeiro foi atender também outro freguês de uma compra mais robusta e trabalhosa. Caminho de volta, Antonin viu o passarinho parado contando. Naquela época era cassa com estilingue. Meteu a mão no bolso como sem lembrar que estava sem o seu estilingue. Ele, porém, sentiu a nota de cinco ainda vivinha dentro. Tirou para fora e seu coração de criança inocente tremeu para fora do peito. A nota nãp era mais sua. Ameaçou chorar. Não teve dúvida. Fez da nota um bolinho pequeno e jogou para o mato, que lá ficou para sempre. O fumo também já foi fumado pelo pai, que há muito anos não existe mais, e Antonin virou Antônio, homem velho e sábio, que desde pequeno não sabe o que é roubar e fazer o mal. Antônio ensina aprendendo.- flavio notaroberto -

conto

Eles estavam já quase casados. O tempo os uniu há muito tempo. Um instante os uniu, e foi avassalador como todos os amores. Os beijos e toques trocados, cúmplices do amor sentido e de um para o outro. Andavam lado a lado agora. Pareciam amigos. Ela ainda fazia de sua mão esforço solitário encostar na dele, por uma, duas, três vezes, e nada de abraçarem-se, palmas sentidas, dedos entrelaçados, calores e amores trocados. Eles andavam e as mãos não se uniram. Era dia e a luz testemunhava a quem via os segredos deles quase escondidos. Um dia comum. Os dias têm um mistério revelador aos casais do que eles foram e podem ser. Parecia que naquele momento os toques representavam pouco, ou quase nada na intimidade do tempo. A amizade causa compaixão. Ela parecia ansiar a paixão, aquela paixão entregue, e pode ser que sobrava apenas a compaixão de um carinho não mais existente. Algo no ar dizia que ela representava o que pode ser de essência nas mulheres em paixão, amar e ser amada, sempre. Um movimento também misterioso, como os dias, de querer o beijo na alma, no toque das mãos dadas lado a lado, num dia comum. Mãos que não se tocam mais foi o quadro doloroso de se imaginar o sofrimento dela. Ele desviou de sua mão, e caminharam, lado a lado. Não sei se dela, se dele, se de quem os via no quadro doía mais. Meus, e talvez outros olhos viram e sentiram. Quis ler o coração dela buscando a mão dele, da alma entregue, dizendo "estou aqui, mão ao lado da sua; abrace-a como outrora." Nada de mãos abraçadas. Estavam juntos, lado a lado, caminhando. Foram. Voltaram. O dia vem eterno, e pode ser que desesperado a ela. Melhor a dor da ausência do que a dor da presença ausente. Quem definha de amor prefere a solidão à pura empatia. Ela talvez só queria crer que ainda ama. "Segure minha mão na sua, e caminhemos juntos." Sem amor, não se vive o presente. Sem amor, a dor da solidão aloja no coração a dois. Alguém sofre mais. Ela sofreu com meus olhos sonhadores da união que não mais havia, senão fragmentos penosamente insistentes, pulverizados, que não mais existirão inteiros. O dia caminha e nada se faz mais presente. Ele não estava mais lá como antes. Ela estava lá, e queria como antes. Acabou, mas ele seguia lado a lado, apenas. Acabou, e ela sabia. Um dia, quem sabe, a dor do aperto da separação possa angustiá-los numa liberdade necessária. Não se deram as mãos. Sem mãos, sem vínculo, sem uma mesma alma, ou cada qual entregue a si mesma, que é doloroso. Eles, por certo, não estão sozinhos. Ela está sozinha em si, e vai tentando levar a solidão sentida de seu jeito. É o jeito, quando não tem jeito.

- flavio notaroberto -

domingo, 19 de janeiro de 2020

conto 3

- Somos muito diferentes, Léia. Não sei se pode dar certo.
- Eu sei que somos, Rafael. Sou eu muito mais bonita do que você, mais jovem.
- Está bem, está bem. Mas têm outras coisas aí.
- Eu sei que tem. Também sou muito mais rica do que você. Aliás, eu sou a rica, né?
- Sim, mas, as diferenças são enormes.
- Rafa, as diferenças atingem o absurdo. Eu sou promotora de carreira e você. Bem, você vende capinhas de celular e tenta escrever versos.
- Então, não sei como dar certo.
Léia silenciou. Ameaçou duas vezes falar. Já estava paga a conta. Levantou-se de repende.
- Vamos.
Rafael agradeceu o garçon na saída e depois o motorista.
- Sabe o que eu estou pensado - disse a Rafael dentro do carro, que olhava o retrovisor - ou você não me ama, ou fala muito bobagem, ou é tóxico e vai destruir minha vida. Há ainda uma quarta hipótese, que deixo para o final.
O silêncio dele foi mais sério.
- Se você não me ama, você finge muito bem, e seria um excelente psicopata. Como você é bastante emotivo e chora em besteirol de filmes e músicas, descarto a psicopatia. Se você falasse muita bobagem, eu já teria descartado você nas primeiras linhas da sua boca; nossos papos são espirituosos, cheios de ideias, agradáveis; nossa sincronicidade é nível máximo de gostos e empatias. Definitivamente, você não fala muita bobagem. Ao contrario, fala muito bem e me sinto acolhida. Se você for uma pessoa tóxica provavelmente será uma pessoal igualmente narcisista. Também descarto. Seus olhos agora denunciam seu emocional fragilizado.
Os olhos dele não se desgrudavam da avenida.
- Mas testemunhando seu olhar melancólico, quase olhos marejados, fixos no infinito, eu vejo mesmo que você, na verdade é inseguro, fraco, masculinidade frágil e tenta esconder de você mesmo a superioridade de uma mulher como eu, que não sabe o que viu em você tudo aquilo que ela tem, e você não. Está me ouvindo? Essa a quarta hipótese. Eu não posso mudar o que eu sou, entende?
Ele disse que sim sussurrantemente com manejos da cabeça. Passou a língua pelos lábios e uma lágrima escorreu. Léia percebeu.
- Pare o carro.
Encostou em instantes.
- Vou de Uber.
- E eu vou para onde? O carro é seu.
- Deixa em casa.
Rafael obedeceu. As chaves ficaram com o porteiro. Esqueceu que não estava com dinheiro. Voltou dezenove quilômetros a pé, quatro horas, de Pinheiros a Vila Matilde, cabisbaixo, resignado. Disse a si mesmo que precisava caminhar. No outro dia, segunda-feira, foi para a loja na frente do metro Artur Alvim. Léia chegou em casa as oito da manhã. Passou a noite na casa de sua mãe, a poucos metros da sua. Antecipa suas férias na Promotoria de São Paulo e pega o avião das 19:40 para Nova Yorque. Bloqueou Rafael de tudo. Só não conseguia apagar as boas memórias dos quase dois meses juntos. Por isso, jamais esqueceu-se dele, e também não conseguiria encontrar alguém com tantas afinidades sutis do mesmo emocional - havia, mas não conseguia. Não era beleza, dinheiro, poder, inteligência. Era viver ao lado de alguém para momentos que nada compra, nem beleza justifica, nem poder impõe, nem inteligência constroi. Só viver ao lado de bem com as palavras, emoções e ideias. Ela poderia ter sido só um pouco mais tolerante com a fragilidade masculina do coitado vendedor de capinhas de celular. Rafael tinha tudo o que ela queria. Exatamente tudo. Aliás, mais do que ele mereceria nesse mundo. Ela tinha tudo o que Rafael queria. Porém, um abismo persistia. Ao que tudo indica, nunca se saberá se foi realmente uma péssima ou boa escolha.

- flavio notaroberto -