domingo, 19 de janeiro de 2020

conto 3

- Somos muito diferentes, Léia. Não sei se pode dar certo.
- Eu sei que somos, Rafael. Sou eu muito mais bonita do que você, mais jovem.
- Está bem, está bem. Mas têm outras coisas aí.
- Eu sei que tem. Também sou muito mais rica do que você. Aliás, eu sou a rica, né?
- Sim, mas, as diferenças são enormes.
- Rafa, as diferenças atingem o absurdo. Eu sou promotora de carreira e você. Bem, você vende capinhas de celular e tenta escrever versos.
- Então, não sei como dar certo.
Léia silenciou. Ameaçou duas vezes falar. Já estava paga a conta. Levantou-se de repende.
- Vamos.
Rafael agradeceu o garçon na saída e depois o motorista.
- Sabe o que eu estou pensado - disse a Rafael dentro do carro, que olhava o retrovisor - ou você não me ama, ou fala muito bobagem, ou é tóxico e vai destruir minha vida. Há ainda uma quarta hipótese, que deixo para o final.
O silêncio dele foi mais sério.
- Se você não me ama, você finge muito bem, e seria um excelente psicopata. Como você é bastante emotivo e chora em besteirol de filmes e músicas, descarto a psicopatia. Se você falasse muita bobagem, eu já teria descartado você nas primeiras linhas da sua boca; nossos papos são espirituosos, cheios de ideias, agradáveis; nossa sincronicidade é nível máximo de gostos e empatias. Definitivamente, você não fala muita bobagem. Ao contrario, fala muito bem e me sinto acolhida. Se você for uma pessoa tóxica provavelmente será uma pessoal igualmente narcisista. Também descarto. Seus olhos agora denunciam seu emocional fragilizado.
Os olhos dele não se desgrudavam da avenida.
- Mas testemunhando seu olhar melancólico, quase olhos marejados, fixos no infinito, eu vejo mesmo que você, na verdade é inseguro, fraco, masculinidade frágil e tenta esconder de você mesmo a superioridade de uma mulher como eu, que não sabe o que viu em você tudo aquilo que ela tem, e você não. Está me ouvindo? Essa a quarta hipótese. Eu não posso mudar o que eu sou, entende?
Ele disse que sim sussurrantemente com manejos da cabeça. Passou a língua pelos lábios e uma lágrima escorreu. Léia percebeu.
- Pare o carro.
Encostou em instantes.
- Vou de Uber.
- E eu vou para onde? O carro é seu.
- Deixa em casa.
Rafael obedeceu. As chaves ficaram com o porteiro. Esqueceu que não estava com dinheiro. Voltou dezenove quilômetros a pé, quatro horas, de Pinheiros a Vila Matilde, cabisbaixo, resignado. Disse a si mesmo que precisava caminhar. No outro dia, segunda-feira, foi para a loja na frente do metro Artur Alvim. Léia chegou em casa as oito da manhã. Passou a noite na casa de sua mãe, a poucos metros da sua. Antecipa suas férias na Promotoria de São Paulo e pega o avião das 19:40 para Nova Yorque. Bloqueou Rafael de tudo. Só não conseguia apagar as boas memórias dos quase dois meses juntos. Por isso, jamais esqueceu-se dele, e também não conseguiria encontrar alguém com tantas afinidades sutis do mesmo emocional - havia, mas não conseguia. Não era beleza, dinheiro, poder, inteligência. Era viver ao lado de alguém para momentos que nada compra, nem beleza justifica, nem poder impõe, nem inteligência constroi. Só viver ao lado de bem com as palavras, emoções e ideias. Ela poderia ter sido só um pouco mais tolerante com a fragilidade masculina do coitado vendedor de capinhas de celular. Rafael tinha tudo o que ela queria. Exatamente tudo. Aliás, mais do que ele mereceria nesse mundo. Ela tinha tudo o que Rafael queria. Porém, um abismo persistia. Ao que tudo indica, nunca se saberá se foi realmente uma péssima ou boa escolha.

- flavio notaroberto -