Flavio e seus Contos Suaves
Um amigo me convidou para escrever o texto de apresentação de sua obra, um livro de contos, chamado Contos Suaves. Apesar da aparente frieza com que dou essa notícia, eu aceitei o convite como se aceita o filho do outro para amadrinhar… feliz, maaaaas, com o peso da responsabilidade.
Li a obra e sou fã do jeitinho que ele escreve. Além disso, conheço o Flavio há 20 anos (sim, desde quando eu era pré-adolescente) e pude acompanhar algumas dificílimas etapas de sua vida de perto, outras vezes de longe, mas sempre em uma torcida íntima de que as coisas dessem sempre certo pra ele.
O Flavio, que eu conheci como Chico lá nos idos dos anos 90, chegou a minha vida como amigo do meu irmão, que eu imediatamente roubei pra mim. Sim, ele tinha muito mais afinidade comigo, pois eu lia romances e escrevia poesias, do que com o pragmático e matemático e exato do meu irmão. Por ele ser barbudo, encardido, libertário, anarquista e, além de tudo, ser doce e escrever poesias como eu (além de saber recitá-las, o que eu nunca soube fazer e acho o máximo), me apaixonei por ele com todo meu coração.
Ele não quis me namorar e acabamos nos tornando amigos. Mais do que isso, iniciamos uma troca de correspondências que durou anos, cartas e cartas e cartas e cartas escritas a mão (não tinha internet!), longuíssimas e que falavam sobre tudo, sobre poesia, romances, dica de livros, lições de casa (ele indicando leitura para mim, pois ele era mais velho), amizade e amor.
Então, aos poucos, nos afastamos um do outro. Talvez porque eu tenha entrado na faculdade e feito novos amigos… ou porque meu namorado à época não encarava com bons olhos essa “ardente” troca de correspondências que não cessava… ou porque ele tenha se casado também… hoje é difícil identificar quando e porque rompemos a comunicação por meio das cartas.
Depois de um tempo, quando eu conversava com ele pela internet, sentia que ele havia perdido um pouco aquele papo apaixonante sobre literatura e só falava de Deus Deus Deus Deus. Sim, parece que ele abraçou uma religião e em todo diálogo nosso ele queria sempre “pregar” e isso me cansava.
Eu acompanhei de longe sua vida, ele se formou em Letras, é professor, casou-se com a Priscila, uma garota incrível, tiveram três filhos lindos (Sofia, Pedro e Daniel) e, agora, vai editar um livro… e me convida para o batismo.
Voltando ao início do texto, confesso que aceitei como se aceita um “trabalho”, um contrato a fazer. Mas quando eu comecei a escrever, um filme se passou em minha cabeça desde o dia em que eu o conheci e, depois de tantos anos, ele me concedeu essa honra sem tamanho.
Honrada, porém, cheia de medos pelo tamanho da responsabilidade, optei em fazer daquele jeito de sempre: deixei meu coração escrever (depois arrumei pontos e vírgulas e mecanismos de coesão e afins). E o texto ficou incrível, porque ele é incrível, o livro dele é incrível, nossa história teve um peso assertivo muito importante em nossas vidas e, mesmo depois de tantos anos, fluiu como fluia as cartas manuscritas de anos atrás.
Este post é uma singela homenagem ao Flavio Notaroberto, este professor vencedor da vida, que edita seu primeiro livro, Contos Suaves, com a apresentação de Renata, sua amiga, que copio abaixo. E à amizade, sempre provando que tempo e distância são duas coisas… simplesmente coisas que em nada interfere quando o sentimento é de verdade.
******
Apresentação
É fácil enxergar suavidade em um tecido macio, no desmanchar das nuvens, no sabor adocicado de uma sobremesa de frutas ou no toque do pé em uma areia macia. Está ao alcance de qualquer um perceber a suavidade nessas coisas. O desafio, entretanto, está na percepção do que vai além das aparências, dos sentidos e do óbvio. Os que conseguem conquistá-la não se tornam melhores ou piores do que ninguém, mas se tornam diferentes.
Quando eu conheci o Flavio há quase 20 anos, ele me encantou por enxergar além da casca de todas as coisas. Sua aparência grosseira, encardida, seu perfil militante e revolucionário típico de homens brutos nunca disfarçaram, pelo menos para mim, a suavidade da sua alma.
Naquela época, tive o prazer e a satisfação, quando eu era apenas uma adolescente arredia, de trocar correspondências sobre literatura e filosofia com o autor desses lindos Contos que vocês estão a prestes a degustar e, ao longo dos anos, pude perceber a lapidação de um escritor impecável e absolutamente sensível a sua realidade como morador da periferia de São Paulo.
Está presente em seus Contos o realismo puro e irretocável, próprio de alguém que viveu na pele todas as dificuldades de se morar no extremo da zona leste de São Paulo e conseguiu extrair a suavidade e a beleza que estão presentes na luta cotidiana dessa numerosa população abandonada por todas as iniciativas de desenvolvimento social e de infra estrutura que presenciamos há décadas em nossa cidade.
Os Contos trazem histórias que permeiam várias regiões da cidade de São Paulo, desde os extremos das periferias até as zonas centrais mais abastadas. O autor trabalha os contrastes com maestria, fazendo-nos exergar em personagens que, à primeira vista, julgaríamos opostos, um pouco de nós mesmos.
A riqueza desta obra está na riqueza da formação pessoal do autor. Não digo de estudos, pois acredito que a nobreza da boa literatura transcende os bancos acadêmicos. Mas sim, mesmo tendo o autor excelente formação em uma das instituições mais prestigiadas no país, reside nas experiências cotidianas, no baú de boas leituras realizadas ao longo da vida, na conversa com os mais velhos, que já viveram tanto, e com os mais jovens, que anseiam tanto em viver. Também está no tal do olhar além da casca, matéria em que nosso professor Flavio é hors concours!
Contos Suaves tem a responsabilidade de cumprir duas importantes tarefas na vida do autor: a primeira, a de servir como presente aos seus alunos, amigos e familiares que o acompanharam durante sua trajetória, que foi dura, e o livro representa uma graça que o autor retorna a essas pessoas, como um “muito obrigado”, mesmo. E a segunda, entendo como uma recompensa, mas não algo que tenha vindo pronto por seu merecimento, que é notório, mas algo que ele mesmo construiu, como se todos os dias ele pincelasse sobre uma tela branca sua história, às vezes com raiva, outras com amor, ora derrotado, ora vitorioso, e hoje estivesse admirando a obra de arte, fruto de tanto trabalho, suor, dedicação, perseverança, fé e determinação.
O lugar comum desses adjetivos é inevitável, pois estamos falando, sim, de uma pessoa comum, com o pequeno diferencial de enxergar palavras em tudo, nas coisas, lugares, pessoas… e convergi-las para histórias que nos enchem os olhos.
É isso que diferencia os escritores dos leitores: os leitores por meio das palavras apreendem histórias e personagens e, por isso, têm sede de leitura. Os escritores, ao contrário, extraem das pessoas e coisas as palavras que viram histórias, contos, romances e novelas e, por isso, são têm sede de realidade. E a beleza do ato da leitura é justamente o encontro dessas peças fundamentais para o desenvolvimento de qualquer cultura popular.
Sendo assim, caro leitor, a seguir terá início esta fecunda relação entre autor e leitor que alimenta e dá continuidade à arte da literatura ao longo dos séculos. Neste momento, você e o querido autor Flavio, de mãos dadas, dão vida e movimento à história da literatura nacional, que se fez e se faz, com pessoas que lêem e escrevem. Apesar da profundidade que envolve o tema, o resumo é simples assim.
Deixo-os agora com a leitura de Contos Suaves, uma obra delicada, apesar de realista, que consagra essa habilidade do autor de enxergar suavidade nas asperezas do cotidiano e transformá-las em belíssimos textos, com personagens que podem representar a mim, ou a você, ou alguém que você conheça. Os contos são intensos porque nos aproximam da história e dos personagens de uma maneira arrebatadora e, na mesma medida, com uma suavidade incrível.