sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Trecho Miguelito

"Ouvindo, surpreso, encantado, apaixonado, antes de o padre Miguel fazer qualquer comentário, Mariana concluiu:

─ Esta é minha visão do que as pessoas entendem por fé: eu não tenho filosofia: tenho sentidos. Semântica são meus sentidos que traduzo através do meu corpo, que capta o mundo e o transforma em pensamentos.

Padre Miguel então sorriu com a alma, com os lábios. Foi de contentamento, não menos eufórico. Mariana voltou para cama. Devolveu-lhe parte do lençol. Ficaram agora abraçados, em silêncio. Fazia calor. O toque do abraço tem a dimensão de aquecer todo relacionamento. Ficaram abraçados por minutos. Silêncio. Religiosamente respeitado. Padre Miguel sem voz para expressar. Gostou de despertar desta forma. Sexo rapidinho para lubrificar o corpo. Momento de expansão para ter a certeza de que a alma existe. Silenciou até quando pôde. Seriamente quis fazer do silêncio o agradecimento. No início da tarde, ele tinha que ir à escola do Miguelito para uma reunião com o professor Zazen. Antes, ele diz a ela:

─ O filósofo medieval católico Santo Agostinho, você o conhece?

─ Só ouvi falar, respondeu sonolenta, que na verdade era letargia de felicidade.

Padre Miguel buscou de memória sua definição de Deus, escrita por Santo Agostino nas Confissões. Foi a pedra angular que o fez abandonar a futura carreira de médico.  Arrebatador para ele e para a sua depressão.

Mais sisudo, ele não se ergueu da cama. Nem tirou o lençol. Mariana aos seus braços, protegida emocionalmente das guerras dos homens. Ele vasculhou, de memória, os trechos de Confissões, de Santo Agostinho até descobrir a parte que lhe interessava. Não exagerou na dicção nem na retórica, nem na oratória. Foi mesmo com a simplicidade de quem está agradecido por ter alguém tão especial quanto a Mariana ao lado.

─ Presta atenção.

─ Fala.

Ele falou como se fumasse um cigarro e dava pausas para longas tragadas. A verdade, no entanto, era que ele segurava as lágrimas. Deixou escapar algumas, entre uma linha e outra. Relembrar era um filme pessoal que marcou dores, dividiu almas, fez de sua vida o que podia para não sair dela pelas portas do fundo e da solidão e da escuridão. Fosse entregue à dor, aquele momento na cama, aos braços de Mariana, não existiria. Não quis imaginar esta possibilidade, e foi citando as Confissões:

"Que eu amo, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus. Luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contem, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo meu Deus."


─ Interessante, disse ela. Continuo não crendo em Deus.

Ele sorria e se antecipou.

─ E eu continuo amando você, Mariana.

E tocaram os lábios com carinho e ternura. Era manhã despretensiosa.
Literária e filosoficamente, silenciaram agarrando-se. Nenhum contraditório supera as obrigações do dia-a-dia e eram quase dez horas da manhã. Padre Miguel tinha que ir à escola. Estava bom. Muito bom ainda amar desta forma."

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Jovens

Aos jovens deveria ser dado todo o monopólio dos sentimentos encantadores de descoberta; aos adultos a confraria de todas as sensações permitidas e vividas em que os sentimentos renovados passassem bem superficialmente como coisa nostálgica, sem a importância que o sofrimento e o deleite dariam a eles. Nós, homens e mulheres adultos, não somos uma casa sem moradia, ou melhor, não somos uma casa abandonada e baldia. Nossa memória faz o papel dos quadros nas paredes, dos livros na estante, dos filmes abandonados na prateleira, dos ambientes dispostos e mobiliados. Olhar para dentro de si, quando adulto, são paisagens descobertas sem espanto, sem assomo, sem assombro. São nossas próprias paisagens fugitivas e furtivas. Reviver sentimentos depois de adulto, claro, que é válido. Um 'novo' amor? Não sei, porém, se adequada esta disputa com a juventude. A juventude sabe que a dor da separação é eterna, que o amor correspondido é sublime, que nada neste mundo é mais importante do que os prazeres da liberdade e da própria vontade realizada. A pouca experiência dos jovens faz a novidade certa e única. Meus irmãos que consagram seu tempo à vida com a experiência de décadas passadas, como eu, eu os convoco à reflexão noturna ou quase diurna do Horário de Verão, com uma hora temporariamente roubada de nós. Deixemos aos jovens as reais descobertas do que já somos. Sofremos porque 'viver é sofrer', nos sugere o filósofo. Para os jovens sofrer é viver sem a mínima noção do porvir. Não há melhor compreensão do que somos, senão viver é sofrer. As décadas nos envolvem da cabeça aos pés inùmeros sentimentos contraditórios, e isto é sofrer. Nada sobra em nossa confusão sem paz. A não ser nossas memórias. Eu gosto de pensar assim: aos jovens suas vidas entregues às experiências; a nós as experiências como sinal de vida. Somos lá um tanto jovial, mas para que mesmo? Querer aprisionar o quê e com quem? Ser livre é seguir. Os jovens, sem saber, estão se prendendo para descobrirem algo que os adultos amam ter: a real liberdade. Terminou depois dos 30? Sorria. Definitivamente não somos mais jovens.