"Ouvindo, surpreso, encantado, apaixonado, antes de o padre Miguel fazer qualquer comentário, Mariana concluiu:
─ Esta é minha visão do que as pessoas entendem por fé: eu não tenho filosofia: tenho sentidos. Semântica são meus sentidos que traduzo através do meu corpo, que capta o mundo e o transforma em pensamentos.
Padre Miguel então sorriu com a alma, com os lábios. Foi de contentamento, não menos eufórico. Mariana voltou para cama. Devolveu-lhe parte do lençol. Ficaram agora abraçados, em silêncio. Fazia calor. O toque do abraço tem a dimensão de aquecer todo relacionamento. Ficaram abraçados por minutos. Silêncio. Religiosamente respeitado. Padre Miguel sem voz para expressar. Gostou de despertar desta forma. Sexo rapidinho para lubrificar o corpo. Momento de expansão para ter a certeza de que a alma existe. Silenciou até quando pôde. Seriamente quis fazer do silêncio o agradecimento. No início da tarde, ele tinha que ir à escola do Miguelito para uma reunião com o professor Zazen. Antes, ele diz a ela:
─ O filósofo medieval católico Santo Agostinho, você o conhece?
─ Só ouvi falar, respondeu sonolenta, que na verdade era letargia de felicidade.
Padre Miguel buscou de memória sua definição de Deus, escrita por Santo Agostino nas Confissões. Foi a pedra angular que o fez abandonar a futura carreira de médico. Arrebatador para ele e para a sua depressão.
Mais sisudo, ele não se ergueu da cama. Nem tirou o lençol. Mariana aos seus braços, protegida emocionalmente das guerras dos homens. Ele vasculhou, de memória, os trechos de Confissões, de Santo Agostinho até descobrir a parte que lhe interessava. Não exagerou na dicção nem na retórica, nem na oratória. Foi mesmo com a simplicidade de quem está agradecido por ter alguém tão especial quanto a Mariana ao lado.
─ Presta atenção.
─ Fala.
Ele falou como se fumasse um cigarro e dava pausas para longas tragadas. A verdade, no entanto, era que ele segurava as lágrimas. Deixou escapar algumas, entre uma linha e outra. Relembrar era um filme pessoal que marcou dores, dividiu almas, fez de sua vida o que podia para não sair dela pelas portas do fundo e da solidão e da escuridão. Fosse entregue à dor, aquele momento na cama, aos braços de Mariana, não existiria. Não quis imaginar esta possibilidade, e foi citando as Confissões:
"Que eu amo, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus. Luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contem, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo meu Deus."
─ Interessante, disse ela. Continuo não crendo em Deus.
Ele sorria e se antecipou.
─ E eu continuo amando você, Mariana.
E tocaram os lábios com carinho e ternura. Era manhã despretensiosa.
Literária e filosoficamente, silenciaram agarrando-se. Nenhum contraditório supera as obrigações do dia-a-dia e eram quase dez horas da manhã. Padre Miguel tinha que ir à escola. Estava bom. Muito bom ainda amar desta forma."