Capítulo 4
- Cocaína? Comecei no segundo ano da faculdade.
O apartamento no Anália Franco era bem espaçoso. A mesma mobília de vinte anos atrás. Exceção da reforma no banheiro adaptado quando Cotonete perdeu os movimentos das pernas e pequena mudança na parte de acessibilidade no seu quarto. Basicamente a mesma cadeira macia da mesa de jantar em que eu sentei pela primeira vez em maio de 1995. O conforto interno, porém, mudou. O conforto é uma luz com a qual se acostuma pelo brilho e falta dele, ou um tempero que definha o gosto envolvente pelo uso.
Outra exceção recente no duplex, o guarda-roupa do casal médico. Doutor Carlos Sampaio desmontou o velho. Carregou sozinho para doação. Foram ao um planejado. Fizeram um belo projeto. Ele mesmo montou. Um dia todo. Sozinho. Peça por peça. Encaixe. Ajuste. Precisão cirúrgica.
Já banho tomado, pijama e chinelo, sorriu com ternura ao abrir a porta. Nem me anunciavam mais na portaria. Falei que chegararia às dez da noite, mas já passavam das onze. Era meu rodízio. Saí da Av. Paulista depois de tomar um premeditado pé na bunda da Marcela, a jornista interesseira, e que me poupou muito aborrecimento emocional. Também liguei para casa para saber dos meus irmaos que estavam no último ano da faculdade na FEI. Já estavam em casa.
- Doutor Carlos.
Me abraçou chacoalhando. Dona Claudia distraída na sala com um livro na mão. Me cumprimentou com sorriso cheio de alegria. O livro em suas mãos era A História do Mundo para Quem Não Tem Pressa. Disse qualquer coisa de interessante e que sempre teve curiosidade em ser mais culta. Entrou na moda pessoal de ir nos últimos anos a todas as exposições de arte e ver muitas peças de teatro. Filmes cults e gastronomia refinada toda semana. Minha segunda mãe a dona Cláudia. Há anos não tinha mais formalidades comigo tal era a nossa intimidade e cumplicidade.
- Vem ver o guarda-roupa, me puxou para o seu quarto o doutor Carlos Sampaio.
Abriu cada porta. Vazio por dentro. Era tom cinza bem claro. A firmeza era o ponto alto. Sem folga. Espelhos de fora a fora. Muitas gavelas. Se estendia de cima abaixo da parede inteira, mais meia parede, fazendo um L. O quarto, sem dúvida, ajudava demais.
Ainda fica em minha memória a importância da sensação de espaço físico grande para ampliar os espaços internos de nossas mentes. Como mergulhar os olhos em um campo aberto ou os mesmos olhos observando o infinito do mar.
Lá na favela me lembro que os espaços apertavam nossas mentes numa desproporção que machuva os mais sensíveis. Achávamos normal ir e vir como formigas em linha reta. Dentro dos barracos, estar dentro era uma mentirosa sensação de posse. Melhor, claro, do que estar fora. Tanto que me surpreendi ver a favela do alto do morro com o Cotonete naquele dia em que ele se espatifou escadão e morro abaixo. Pude enxergar quão apartado vivíamos todos lá, e quão internamente não nos incomodava.
- Amanhã vamos botar roupas e arrumar tudo. Hoje minha mão arde e minhas costas doem.
A empregada Fátima tinha 62 anos. Ainda vinha passar a roupa, preparar o almoço, lustrar os móveis, tira o pó. Ofereceu ajuda para organizar. Para deixar tudo arrumado depois de instalado.
- Pode deixar, Fátima. Deixa colocar onde posso, depois saberá como querro. Depois você ajuda, me confessou o doutor o que disse a ela.
A Fátima trabalhava pouco por dia. Ficava quatro horas, de segunda a sexta-feira. Chegava entre oito e nove da manhã. Preparava o café antes do casal despertar. Exigiam apenas o café da manhã e algo para a janta. Não almoçavam mais em casa. E mesmo assim, somente algo especial para um jantar com os pouquíssimos amigos. O casal Carlos e Cláudia jantavam fora regularmente. Virou rotina. Uma boa rotina para eles.
Me disse certo dia a dona Cláudia que não estavam sendo bondosos com a Fátima não. Era uma recompensa de gratidão divina pelos anos e anos nos momentos mais críticos em que ela se dedicou e cuidou exclusivamente do Cotonete, principalmente na sua ausência como mãe. Nunca foram explícitos à empregada. Um bom caráter se revela quando não se mostra com a mão esquerda o bem que se fez com a direita.
Vou chamar de maluquice e desajuste as estranhas e diferentes reações das pessoas ao viver as atribulações de suas vidas. Longe de ser fórmula fixa o comportamento dos homens. No caso deste casal, seria justificável, ao perder o Cotonete, dominar o egoísmo destruidor e que ele se apossasse tanto da Cláudia quanto do doutor Carlos Sampaio. Com as dores e frustrações da vida se aprendem também a ser mal, malígno, desumano, indiferente, revoltado. Tivemos sorte - eu e as demais pessoas do círculo de amigos deles - que no coração deste doce casal a benevolência fez moradia apesar do sofrimento. Acolheram os mais próximos. E vivem anos relativamente felizes desde 2005.
- Vou confessar, doutor Carlos Sampaio, que há muito sempre quis abrir meu coração para o senhor. Algo que a dona Cláudia me disse há muitos anos. O senhor era dependente de cocaína?
Olhou-me sem jeito. Não me devia satisfação alguma. Mas visivelmente baqueado com minha intromissão nas suas intimidades. Olhou para dentro do seu passado e marcas interiores. Nossas memórias vivem ou hibernam. Mas não morrem sem nós.
- Foi no dia em que o Cotonete despencou do escadão, continuei eu. Eu dormi aqui. Tomei banho. O senhor ficou lá no hospital. Antes de dormir, eu tive o abuso de perguntar por que o doutor Carlos Sampaio se alterava com muita desproporcionalidade diante do filho.
Nestas alturas estávamos na sacada do prédio. Tinha uma jarra de suco ainda não tocada. A bolacha de chocolate. O clima favorável. São Paulo nossa paisagem. Olhávamos para a zona oeste de São Paulo. Embora mesmo fosse panorâmica.
Horas antes, eu pedi por telefone uma consulta. Acho que na verdade eu precisava mais arrancar dúvidas dentro de mim por que me angustiavam. Estava psicologocamente mal. Motivos de reconstruir laços que ainda me inquietavam. Amarrar pontas dispersas de fios. Lembrar-me do Cotonete, ou não deixá-lo cair no esquecimento. Fazia-me muito bem.
- Cocaína? Comecei no segundo ano da faculdade, me disse o doutor Carlos, e começou o médico a falar por um bom tempo toda a sua experiência com a cocaína e alguns relatos de sua vida pessoal. Naquele dia em que o Luiz foi levado ao hospital, já tinha sido a terceita vez em menos de dois meses que ele nos dava problemas assim. Eu me recordo de tudo. Foi para a escola pública e começou o inferno. A primeira porque desmaiou ao bater a cabeça na trave da quadra. A Cláudia o acompanhou. Na segunda, duas semanas depois, a perna quebrada em dois lugares diferentes. Novamente a Cláudia que consertou e mesmo assim o moleque não parava. Nesta terceira no hospital, assim que meu celular tocou, eu já estava chapado de pó. Tinha acabado de cheirar duas longas carreiras. Me lembro até onde eu estava, mas tenho vergonha de admitir. Saí do hospital onde travalhava no período da tarde. Cheirado sim. E cheirei mais numa boite no centro de São Paulo. Próximo à Praça Roosevelt. Demorei uns segundos para processar o blablablá no celular. Minha intenção era falar "que morra!". Segurei. Falei algo "que merda!" E parti para o Ivo. Cheguei cheirado e reabasteci no caminho mais uma tira. Permaneci cheirado os três dias em que ele ficou lá. Aquela lucidez aparente do Luiz Gabriel quando cheguei foi enganosa. Durante à noite seguiram três convulções. Duas delas com parada cardíaca. Eu o acampanhava na sala. Não sei se ele se salvou por causa da cacaína. Me falaram depois que eu fui um monstro nas massagens cardíacas. Um monstro.
Desta informação, com estes detalhes, me pouparam. Mais para frente narro outros que ouvi e soube naqueles dias.
- Para me manter lúcido eu cheirava constantemente.
- Como entrou no vício, doutor Carlos Sampaio?
- Tudo o que eu falar sobre a minha dependência química vai ser desculpa. Meu vício começou quando achei que jamais seria dependente. Eu cresci na pacata cidade de Tiradentes, em Minas. Meu pai tinha alguns gados leiteiros. Fazia muito queijo para o turismo local. Tinha plantação de subsistência diversificada para consumo próprio e para as pequenas vendinhas da cidade. Um irmão meu, o mais velho, diferença de cinco anos de mim, um mês depois de fazer dezoito, bandonou a terra e foi para os Estados Unidos. Disse que iria viajar. Não falou nem para meu pai nem para a minha mãe. Simplesmente foi. Nunca mais voltou. E a dor de minha pobre mãe? Até hoje. Tive contato com ele há uns cinco anos pela Internet. Pouco falamos. Nem o Cotonete citei. E nos falamos outras às vezes. Mas deixou de ser parente. Eu e minha irmã ajudávamos no pequeno sítio, principalmente fazendo queijo, que, como disse, meu pai fornecia para os pequenos comerciantes. Havia uma escola longe de casa. Eu andava três quilômetros para chegar lá de manhã. Onde aprendi que meu lugar era nos estudos. Minha cabeça perdia a noção da realidade porque eu não largava os livros. Aquilo deixava minha mente eufórica e inquieta. Poder aprender as coisas diferentes me animava o espírito. E os elogios? Demais. Os professores faziam questão de me ensinar com mais dedicação e atividades extras depois da aula. Muitas. Me davam muitas atividades extras para fazer. Durante a noite, ficava lendo e relendo até memorizar. Dormia tarde. Levantava cedo. Eu amava ser elogiado. Uma necessidade de que não tinha controle. Conversava sempre com a minha irmã que uma hora eu me mudaria para São Paulo. Era meu sonho escondido de meus pais. Meu sonho era estar em uma faculdade. Nunca pensei em ser médico. Médico virei e depois neurologista em um momento em que falar sobre neurologia era dizer pouco. Me inclinei para a psiquiatria. Passei na UFJF com dezessete anos. Continuava a ser exemplo de aluno. Agora com muito mais responsabilidade. Minha irmã continuou em Tiradentes. Ela se casou lá, não estudou, e aos poucos transformamos o sítio do papai em uma pousada e lugar turístico, sem abandonar os queijos e algumas produções da terra. A pousada ficou linda. Piscina, vinte suítes bem acolhedoras. Ela e o marido com mais duas filhas mantém o negócio hoje. Minha mãe ainda vive com 82 anos de idade. Papai faleceu há cinco anos, em 2010. Me lembro de que foi neste momento em que tive contato com meu irmão para falar da morte de papai. Ele realmente já não era mais do que um estranho.
- E a cocaína?
- Foi a droga.
- Como ela fez parte da vida?
- Tenho por mim que cada organismo responde de uma forma a tudo que consome. Carne, gordura, doce, inclusive adrenalina. Existem pessoas que precisam do perigo na vida. São comportamentos. Assim foi comigo com a cocaína. A primeira cheirada foi no segundo ano da faculdade, final do primeiro semestre. Era uma sexta-feira como esta. Raramente eu acompanhava as festas no campus da Federal. Era o último dia das aulas e depois recesso. Fui na onda como das outras vezes. O Ricardo e o Mendes eram meus amigos de quarto no dormitório alugado. Não me recordo a rua. Umas três quadras depois do portão principal. O único que se envolvia com cocaína era o Mendes. O pai fazendeiro de Goiás. Mandava mais dinheiro do que o necessário. Era 1972. Cocaína era um bem raro e caro. Eu sempre muito mímido. Virgem com dezenove anos. A dança de salão e cerveja passavam longe de mim. Tudo certinho. Sem exageros. O Mendes me chamou para ir ao banheiro. Ricardo estava de papo com uma menina que seria a futura mãe de meus outros filhos, a Glória, que fazia biologia. Na verdade o nome dela era Maria da Glória. Ricardo ficou de conversa com ela. Fomos lá. Mendes fez a carreira da cocaína. Antes de cheirar me pediu uma nota. Perguntou se seu tinha uma nota nova de Cruzeiro. Saquei uma de cinquenta. Ele fez um tubo com ela. Passou o nariz e sumiu a carreira. Fungou o nariz uma três vezes e pigarreou. Ficou me olhando curioso.
- Você quer experimentar, Carlos?
- Por que não? Faz aí.
E ele fez com certo mal gosto. Carreirinha pequena. Com a mesma nota de cinquenta de Cruzeiro, cheirei. Em instantes, imagine um novo Carlos? Foi cheirar. Sair do banheiro. Dar alguns passos. Voltar para próximo do Ricardo que ainda conversava com a Cristina. O Mendes ao meu lado já nem mais preocupado. Eu me lembro que ele botou a minha nota de cinquenta Cruzeiros no seu bolso. Foi neste dia que tomei meu primeiro copo de cerveja. Um sujeito falador e abusado apareceu em mim. Os efeitos psicológicos inesquecíveis. Euforia, sensação de poder, ausência de medo, ansiedade, agressividade positiva, excitação física, mental e sexual. Virei homem e tomei a frente do Ricardo sobre a Glória. Me intrometi falador. Ela me achou muito mais interessante. Em meia hora beijei-a. Pouco tempo depois fiz sexo com ela atrás do prédio. Tudo se encaixando perfeitamente. Era apenas o que me faltava na vida. A cocaína me deu mulher, beijo, sexo, vida mais social. Fiz dela uma parceira diária depois das aulas. O Mendes sempre tinha. Passamos a faculdade na boa. Geralmente cheirando à noite. De manhã, somente quando tinha provas. Não deixei de ser bom aluno. Não me sentia viciado. Me sentia potencializado. Depois de seis anos, no início de 1977, quando me bacharelei, me mudei para São Paulo para fazer Residência. Comecei no Hospital das Clínicas, na USP. Depois fui para o Hospital Benedito Montenegro, no Jaedim Ivo.
- O Ivo.
- Isto. Onde o Luiz ficou aquela vez que despencou do morro.
- Fiz residência até 1979. Depois me especializei em psiquiatria e me doutorei em neurologia. Isto já em1985. Quando me reencontrei com a Glória foi em 1981. Ela era professora de escola pública. Daquelas coincidências. Ela foi no Ivo para uma consulta. Eu a reconheci. Marcamos um dia para nos vermos e ficamos. Na primeira trepada, grávida. Tivemos dois filhos, o Leandro em 1981 e a doce Soraia em 1983. Nada de casamento. Nem moramos juntos. No mesmo ano do nascimento da Soraia, porém, me apaixonei pela Cláudia. Tivemos o Luiz em 1984. Foi total maluquice o que fiz. E me casei formalmente com ela assim que soube da gravidez. Fiquei louco por esta mulher.
Enquanto o doutor Carlos Sampaio narrava a sua vida, eu às vezes olhava para a Cláudia, com o livro aberto, sentada e distraída no sofa da sala.
- A cocaína junto.
- Nesta época eu cheirava quando acordava e depois do trabalho. Se o dia fosse tenso pela manhã, era depois do almoço. Mesmo morando com a Cláudia, ela nem desconfiava, não sabia nesta época de minha dependência.
- Doutor, e quando descobriu que o Cotonete tinha mal formação? Ela me disse que foi aí que o senhor quis que ela abortasse.
- Eu estava era muito drogado. Coloquei na cabeça que ela tinha que abortar. Eu já tinha o Leandro de dois anos e a Soraia com quase um ano. Aquilo para mim era gente saudável. A mãe deles nem sabia da Cláudia e a Cláudia por sua vez nem sabia da Cristina. Era uma confusão sem limites. E para aguentar tudo, cheirava cocaína sem limites. Como disse, eu e a Glória nem movávamos juntos. Ela tinha a casa dela na Penha com a mãe e eu pouco visitava. Alegava sempre plantão. Quer saber? Médico tem desculpa para todas as mulheres. Os filhos foram vindo sem querer. Inclusive com a Cláudia. Ela virou residente no próprio Ivo. Como era doce e inocente e linda a minha Claudinha! Eu me apaixonei por ela instantaneamente. Acredita que fiquei sem cheirar cocaína por quase uma semana por causa dela? A única coisa que me vinha era a sua imagem perfeita em meu coração. Ela é de Mogi das Cruzes. Fez medicina na UMC. Aquela silhueta meio japonesa veio da mãe. Magra como até hoje. Olhos meigos e sempre disposta às pessoas. Saímos quatro vezes e a mulher já ficou grávida. Como disse, acho que na primeira vez. Olha. Guarde um segredo.
- Está bem, doutor.
- Ela iria abortar no primeiro mês. Falou que estava com medo. Disse que estava muito nova para ser mãe e iria atrapalhar sua profissão naquele momento. Temeu principalmente o pai que era um grande produtor no cinturão verde de Mogi das Cruzes e extremamente católico.
No meu íntimo, não foi surpresa o contexto da confusão em que estava toda esta história. E que bela confusão! Foi disto tudo que aos poucos me inspirei para escrever.
- Eu tinha acabado de sair do banheiro quando ela me deu a notícia da gravidez. Ela no meu apartamento, próximo daqui, no Tatuapé. Era domingo. Virei a noite no plantão. Cheirei um pouco de manhã depois do banho. Claro que disse não para aquele absurdo de aborto. Quando eu me drogava, não importa o que o outro pensava ou fazia, minha opinião tinha de ser a contrária. Mantive firme que teríamos o filho. Ela não sabia dos meus outros dois. Quando nos exames pré-natal de quatro meses, foi detectado a má formação no feto, e mesmo assim ela disse que queria ter a criança, eu, bem chapado e doidão, surtei na frente do pediatra, que era amigo nosso, aliás. Lá no São Luiz. Eu berrei que era uma loucura colocar neste mundo pessoas mal formadas. Se ela tivesse dito que iria abortar, eu talvez iria protestar o contrário. A cocaína governava meus desejos e opiniões. Eu estava nem aí. Era ser do contra. Eu vejo que era meu grito inconsciente para alguém me ajudar daquela escravidão. Na abstinência vazia de minha vida, minha cura era cheirar sempre mais e gritar meu desajuste interno. Entrei nos anos noventa com quatro papelotes por dia. De manhã. Tarde. E duas durante a noite. Até quando a Cláudia descobriu minha dependência. Em 1992. Não me impediu e ofereceu ajuda. Eu era um profissional responsável, ainda que péssimo pai. Minha única bronca era com o Luiz e somente Deus sabe lá por qual motivo. Sóbrio eu nem ligava para o menino. Cheirado, me causava ânsia estar ao lado dele.
- Eu me lembro do primeiro dia em que o conheci e suas agressões verbais com o Cotonete. Nunca o agrediu fisicamente?
- Nem ele e nem ninguém. Cheirado, eu falava como fosse outra personalidade em mim. Acordava ou despertava consciente dos vícios que tinha. Mas não tinha sensação alguma de culpa dos meus exageros. Eu apenas cheirava. Mesmo assim, no meio hospitalar, muitos sabiam e admiravam meu trabalho. E aqui entre nós, era grande o número de médicos que metiam o nariz no pó. Acho que por terem sidos reprimidos com aquela loucura desenfreada de ter de estudar, deixavam-se levar pela euforia que a cacaína trazia. O mundo entre médicos escapa o temor e praticamente tudo é possível e liberado. Uma exceção possível é a Cláudia. Criatura adorável e rica. Não me abandonou em minha abstinência. Hoje colhe os frutos de um homem que vive para se dedicar a ela.
E brincando, ficamos na sacada passado da uma hora da manhã. Ouvi com tanta atenção as palavras do doutor Carlos Sampaio que invertemos a comum terapia. Eu falava muito. Ele me ouvia paternalmente. Lembrei que tomei um pé na bunda da Marcela naquele mesmo dia. Eu achava a menina desmiolada. Não batia bem das ideias não. O doutor nem caso deu sobre meu preconceito. Achou desafeto de minha parte e vida que se segue um dia após o outro.
- Doutor Carlos, me perguntou o meu médico, por que não arrisca colocar em escrita seus sentimentos. Inclusive eu dou a você a liberdade para colocar em suas próprias palavras tudo o que eu falei sobre mim mesmo, sobre o Luiz, sobre como detectei seu problema neurológico, como acompanhou meu processo de abstinência e livramento da cocaína, como saiu da favela ainda que a tenha tão enraizada dentro de sua alma. Creio que a Cláudia ficaria muito feliz em ler com as suas palavras sua visão de mundo, fora de tudo isto. Desde aquele fatídico dia e que falei "quem é o pretinho?". Um dor que faço questão de sentir, relembrar, reviver até a minha morte.
Eu não soube o que falar. Os cookies já tinha sido comidos todos. A jarra de suco secada. Uma briza tão gostosa batia nos meus braços. Ergui as mandas longas da camisa. Meu rosto e orelha também gelados. Não fazia frio. A noite tem a vontade de dizer que o dia se foi. Conforme o dia volta ela vai mais a fundo em nossos sentidos para marcar presença.
- Por que não dorme aqui, Carlinhos, me pediu dona Cláudia.
- Estou sem roupa.
- Amanhã não trabalha. Usa do Carlos.
- Prefiro ver meus pais como estão. Sem dizer que o doutor Carlos Sampaio me inspirou algo que possivelmente farei hoje mesmo assim que chegar em casa.
- São quase duas da manhã. Está sem carro, ele me disse. Eu levo você.
- Somos visinhos de quadras, dona Cláudia. Não há necessidade.
A gentileza não era a falta de opção. Era onde o coração dela queria estar naquele momento. Não tinha dificuldade alguma em dizer não a eles. Apenas preferi ir para casa. Ver meus pais, meus irmãos. Estas coisas que me dão sentido na vida. A Marcela teria sido um pesadelo não sonhado. Em boa hora a viagem dela para trabalhar na Europa em 2014. Em boa hora eu não ter o peso do término hoje. Em boa hora ouvir o doutor ao longo de mais de duas horas e, por fim, a ideia de escrever. Meu coração grita uma liberdade complicada. Não é a falta de nada. Uma ausência pessoal esquisita. Talvez escrever seja uma alternativa. Ao invés de falar para meu neurologista sobre minhas emoções, dialogo com minha própria consciência, eu vejo o que deixo escapar o que me oprime.
Na rua, caminhava lentamente. Antes cumprimentei o seu Josias pelo nome. Falei alguma palavra da noite e ele me disse "Deus te acompanhe". Saí discretamente pelo portão. A calçada era a mesma de vinta anos e por algum motivo chorei. Tinha saudades de Cotonete e me veio o desespero da imagem dele rolando a daleira do escadão. Andei vinta minutos cabisbaixo. Sem paletó, que deixei na casa da dona Cláudia e sem a gravata. Camisa aberta para fora da calça.
- Parado!
Já imaginei pelo girofexe
- Isto é hora de preto andar em bairro de rico. Mão a para acabeça.
Obedeci. Me revistaram.
- Antecedentes?
- Não.
- E a droga?
- Não tomo.
Passaram um rádio se procuravam algum suspeito com minhas características na regiao. Negativo. Pegaram meu RG. A funcional do banco.
- Você parece preto decente. Boa genta e trabalhador. De onde vem?
- Casa de amigos.
- Mora onde?
- A duas guadras para frente.
- Fica mal não, negão. É para a sua segurança. Entra na viatura. Vamos deixar você em casa.
- Posso ir andando? Preciso respirar um pouco antes de chegar em casa.
Me liberaram. Pediram desculpas. Partiram. Sentei um pouco no meio fio da rua. Quis dizer tantas coisas para mim mesmo. Não sei se era fraco, forte ou consciente. No fundo a hora marcada do Cotonete me ensinou a ter paz na ignorância e na truculência. Levantei-me. Havia muita polícia na região. Fui para casa sem ser mais importunado naquela nadrugada de sábado, maio de 2015. Minha mãe sono bem leve. Trouxe ainda um pedaço de bolo. Ela achava sempre que vivia cheioa mulheres. Cheio de fome, porém. Tinha razão a minha fome. A camida dela me abria o apitite. Ainda hoje peço pada fazer pé de galinha cozida.