domingo, 31 de janeiro de 2016

Capítulo 4

Capítulo 4

- Cocaína? Comecei no segundo ano da faculdade.

O apartamento no Anália Franco era bem espaçoso. A mesma mobília de vinte anos atrás. Exceção da reforma no banheiro adaptado quando Cotonete perdeu os movimentos das pernas e pequena mudança na parte de acessibilidade no seu quarto. Basicamente a mesma cadeira macia da mesa de jantar em que eu sentei pela primeira vez em maio de 1995. O conforto interno, porém, mudou. O conforto é uma luz com a qual se acostuma pelo brilho e falta dele, ou um tempero que definha o gosto envolvente pelo uso.

Outra exceção recente no duplex, o guarda-roupa do casal médico. Doutor Carlos Sampaio desmontou o velho. Carregou sozinho para doação. Foram ao um planejado. Fizeram um belo projeto. Ele mesmo montou. Um dia todo. Sozinho. Peça por peça. Encaixe. Ajuste. Precisão cirúrgica.

Já banho tomado, pijama e chinelo, sorriu com ternura ao abrir a porta. Nem me anunciavam mais na portaria. Falei que chegararia às dez da noite, mas já passavam das onze. Era meu rodízio. Saí da Av. Paulista depois de tomar um premeditado pé na bunda da Marcela, a jornista interesseira, e que me poupou muito aborrecimento emocional. Também liguei para casa para saber dos meus irmaos que estavam no último ano da faculdade na FEI. Já estavam em casa.

- Doutor Carlos.

Me abraçou chacoalhando. Dona Claudia distraída na sala com um livro na mão. Me cumprimentou com sorriso cheio de alegria. O livro em suas mãos era A História do Mundo para Quem Não Tem Pressa. Disse qualquer coisa de interessante e que sempre teve curiosidade em ser mais culta. Entrou na moda pessoal de ir nos últimos anos a todas as exposições de arte e ver muitas peças de teatro. Filmes cults e gastronomia refinada toda semana. Minha segunda mãe a dona Cláudia. Há anos não tinha mais formalidades comigo tal era a nossa intimidade e cumplicidade.

- Vem ver o guarda-roupa, me puxou para o seu quarto o doutor Carlos Sampaio.

Abriu cada porta. Vazio por dentro. Era tom cinza bem claro. A firmeza era o ponto alto. Sem folga. Espelhos de fora a fora. Muitas gavelas. Se estendia de cima abaixo da parede inteira, mais meia parede, fazendo um L. O quarto, sem dúvida, ajudava demais.

Ainda fica em minha memória a importância da sensação de espaço  físico grande para ampliar os espaços internos de nossas mentes. Como mergulhar os olhos em um campo aberto ou os mesmos olhos observando o infinito do mar.

Lá na favela me lembro que os espaços apertavam nossas mentes numa desproporção que machuva os mais sensíveis. Achávamos normal ir e vir como formigas em linha reta. Dentro dos barracos, estar dentro era uma mentirosa sensação de posse. Melhor, claro, do que estar fora. Tanto que me surpreendi ver a favela do alto do morro com o Cotonete naquele dia em que ele se espatifou escadão e morro abaixo. Pude enxergar quão apartado vivíamos todos lá, e quão internamente não nos incomodava.

- Amanhã vamos botar roupas e arrumar tudo. Hoje minha mão arde e minhas costas doem.

A empregada Fátima tinha 62 anos. Ainda vinha passar a roupa, preparar o almoço, lustrar os móveis, tira o pó. Ofereceu ajuda para organizar. Para deixar tudo arrumado depois de instalado.

- Pode deixar, Fátima. Deixa colocar onde posso, depois saberá como querro. Depois você ajuda, me confessou o doutor o que disse a ela.

A Fátima trabalhava pouco por dia. Ficava quatro horas, de segunda a sexta-feira. Chegava entre oito e nove da manhã. Preparava o café antes do casal despertar. Exigiam apenas o café da manhã e algo para a janta. Não almoçavam mais em casa. E mesmo assim, somente algo especial para um jantar com os pouquíssimos amigos. O casal Carlos e Cláudia jantavam fora regularmente. Virou rotina. Uma boa rotina para eles.

Me disse certo dia a dona Cláudia que não estavam sendo bondosos com a Fátima não. Era uma recompensa de gratidão divina pelos anos e anos nos momentos mais críticos em que ela se dedicou e cuidou exclusivamente do Cotonete, principalmente na sua ausência como mãe. Nunca foram explícitos à empregada. Um bom caráter se revela quando não se mostra  com a mão esquerda o bem que se fez com a direita.

Vou chamar de maluquice e desajuste as estranhas e diferentes reações das pessoas ao viver as atribulações de suas vidas. Longe de ser fórmula fixa o comportamento dos homens. No caso deste casal, seria justificável, ao perder o Cotonete, dominar o egoísmo destruidor e que ele se apossasse tanto da Cláudia quanto do doutor Carlos Sampaio. Com as dores e frustrações da vida se aprendem também a ser mal, malígno, desumano, indiferente, revoltado. Tivemos sorte - eu e as demais pessoas do círculo de amigos deles - que no coração deste doce casal a benevolência fez moradia apesar do sofrimento. Acolheram os mais próximos. E vivem anos relativamente felizes desde 2005.

- Vou confessar, doutor Carlos Sampaio, que há muito sempre quis abrir meu coração para o senhor. Algo que a dona Cláudia me disse há muitos anos. O senhor era dependente de cocaína?

Olhou-me sem jeito. Não me devia satisfação alguma. Mas visivelmente baqueado com minha intromissão nas suas intimidades. Olhou para dentro do seu passado e marcas interiores. Nossas memórias vivem ou hibernam. Mas não morrem sem nós.

- Foi no dia em que o Cotonete despencou do escadão, continuei eu. Eu dormi aqui. Tomei banho. O senhor ficou lá no hospital. Antes de dormir, eu tive o abuso de perguntar por que o doutor Carlos Sampaio se alterava com muita desproporcionalidade diante do filho.

Nestas alturas estávamos na sacada do prédio. Tinha uma jarra de suco ainda não tocada. A bolacha de chocolate. O clima favorável. São Paulo nossa paisagem. Olhávamos para a zona oeste de São Paulo. Embora mesmo fosse panorâmica.

Horas antes, eu pedi por telefone uma consulta. Acho que na verdade eu precisava mais arrancar dúvidas dentro de mim por que me angustiavam. Estava psicologocamente mal. Motivos de reconstruir laços que ainda me inquietavam. Amarrar pontas dispersas de fios. Lembrar-me do Cotonete, ou não deixá-lo cair no esquecimento. Fazia-me muito bem.

- Cocaína? Comecei no segundo ano da faculdade, me disse o doutor Carlos, e começou o médico a falar por um bom tempo toda a sua experiência com a cocaína e alguns relatos de sua vida pessoal. Naquele dia em que o Luiz foi levado ao hospital, já tinha sido a terceita vez em menos de dois meses que ele nos dava problemas assim. Eu me recordo de tudo. Foi para a escola pública e começou o inferno. A primeira porque desmaiou ao bater a cabeça na trave da quadra. A Cláudia o acompanhou. Na segunda, duas semanas depois, a perna quebrada em dois lugares diferentes. Novamente a Cláudia que consertou e mesmo assim o moleque não parava. Nesta terceira no hospital, assim que meu celular tocou, eu já estava chapado de pó. Tinha acabado de cheirar duas longas carreiras. Me lembro até onde eu estava, mas tenho vergonha de admitir. Saí do hospital onde travalhava no período da tarde. Cheirado sim. E cheirei mais numa boite no centro de São Paulo. Próximo à Praça Roosevelt. Demorei uns segundos para processar o blablablá no celular. Minha intenção era falar "que morra!". Segurei. Falei algo "que merda!" E parti para o Ivo. Cheguei cheirado e reabasteci no caminho mais uma tira. Permaneci cheirado os três dias em que ele ficou lá. Aquela lucidez aparente do Luiz Gabriel quando cheguei foi enganosa. Durante à noite seguiram três convulções. Duas delas com parada cardíaca. Eu o acampanhava na sala. Não sei se ele se salvou por causa da cacaína. Me falaram depois que eu fui um monstro nas massagens cardíacas. Um monstro.

Desta informação, com estes detalhes, me pouparam. Mais para frente narro outros que ouvi e soube naqueles dias.

- Para me manter lúcido eu cheirava constantemente.

- Como entrou no vício, doutor Carlos Sampaio?

- Tudo o que eu falar sobre a minha dependência química vai ser desculpa. Meu vício começou quando achei que jamais seria dependente. Eu cresci na pacata cidade de Tiradentes, em Minas. Meu pai tinha alguns gados leiteiros. Fazia muito queijo para o turismo local. Tinha plantação de subsistência diversificada para consumo próprio e para as pequenas vendinhas da cidade. Um irmão meu, o mais velho, diferença de cinco anos de mim, um mês depois de fazer dezoito, bandonou a terra e foi para os Estados Unidos. Disse que iria viajar. Não falou nem para meu pai nem para a minha mãe. Simplesmente foi. Nunca mais voltou. E a dor de minha pobre mãe? Até hoje. Tive contato com ele há uns cinco anos pela Internet. Pouco falamos. Nem o Cotonete citei. E nos falamos outras às vezes. Mas deixou de ser parente. Eu e minha irmã ajudávamos no pequeno sítio, principalmente fazendo queijo, que, como disse, meu pai fornecia para os pequenos comerciantes. Havia uma escola longe de casa. Eu andava três quilômetros para chegar lá de manhã. Onde aprendi que meu lugar era nos estudos. Minha cabeça perdia a noção da realidade porque eu não largava os livros. Aquilo deixava minha  mente eufórica e inquieta. Poder aprender as coisas diferentes me animava o espírito. E os elogios? Demais. Os professores faziam questão de me ensinar com mais dedicação e atividades extras depois da aula. Muitas. Me davam muitas atividades extras para fazer. Durante a noite, ficava lendo e relendo até memorizar. Dormia tarde. Levantava cedo. Eu amava ser elogiado. Uma necessidade de que não tinha controle. Conversava sempre com a minha irmã que uma hora eu me mudaria para São Paulo. Era meu sonho escondido de meus pais. Meu sonho era estar em uma faculdade. Nunca pensei em ser médico. Médico virei e depois neurologista em um momento em que falar sobre neurologia era dizer pouco. Me inclinei para a psiquiatria. Passei na UFJF com dezessete anos. Continuava a ser exemplo de aluno. Agora com muito mais responsabilidade. Minha irmã continuou em Tiradentes. Ela se casou lá, não estudou, e aos poucos transformamos o sítio do papai em uma pousada e lugar turístico, sem abandonar os queijos e algumas produções da terra. A pousada ficou linda. Piscina, vinte suítes bem acolhedoras. Ela e o marido com mais duas filhas mantém o negócio hoje. Minha mãe ainda vive com 82 anos de idade. Papai faleceu há cinco anos, em 2010. Me lembro de que foi neste momento em que tive contato com meu irmão para falar da morte de papai. Ele realmente já não era mais do que um estranho.

- E a cocaína?

- Foi a droga.

- Como ela fez parte da vida?

- Tenho por mim que cada organismo responde de uma forma a tudo que consome. Carne, gordura, doce, inclusive adrenalina. Existem pessoas que precisam do perigo na vida. São comportamentos. Assim foi comigo com a cocaína. A primeira cheirada foi no segundo ano da faculdade, final do primeiro semestre. Era uma sexta-feira como esta. Raramente eu acompanhava as festas no campus da Federal. Era o último dia das aulas e depois recesso. Fui na onda como das outras vezes. O Ricardo e o Mendes eram meus amigos de quarto no dormitório alugado. Não me recordo a rua. Umas três quadras depois do portão principal. O único que se envolvia com cocaína era o Mendes. O pai fazendeiro de Goiás. Mandava mais dinheiro do que o necessário. Era 1972. Cocaína era um bem raro e caro. Eu sempre muito mímido. Virgem com dezenove anos. A dança de salão e cerveja passavam longe de mim. Tudo certinho. Sem exageros. O Mendes me chamou para ir ao banheiro. Ricardo estava de papo com uma menina que seria a futura mãe de meus outros filhos, a Glória, que fazia biologia. Na verdade o nome dela era Maria da Glória. Ricardo ficou de conversa com ela. Fomos lá. Mendes fez a carreira da cocaína. Antes de cheirar me pediu uma nota. Perguntou se seu tinha uma nota nova de Cruzeiro. Saquei uma de cinquenta. Ele fez um tubo com ela. Passou o nariz e sumiu a carreira. Fungou o nariz uma três vezes e pigarreou. Ficou me olhando curioso.

- Você quer experimentar, Carlos?

- Por que não? Faz aí.

E ele fez com certo mal gosto. Carreirinha pequena. Com a mesma nota de cinquenta de Cruzeiro, cheirei. Em instantes, imagine um novo Carlos? Foi cheirar. Sair do banheiro. Dar alguns passos. Voltar para próximo do Ricardo que ainda conversava com a Cristina. O Mendes ao meu lado já nem mais preocupado. Eu me lembro que ele botou a minha nota de cinquenta Cruzeiros no seu bolso. Foi neste dia que tomei meu primeiro copo de cerveja. Um sujeito falador e abusado apareceu em mim. Os efeitos psicológicos inesquecíveis. Euforia, sensação de poder, ausência de medo, ansiedade, agressividade positiva, excitação física, mental e sexual. Virei homem e tomei a frente do Ricardo sobre a Glória. Me intrometi falador. Ela me achou muito mais interessante. Em meia hora beijei-a. Pouco tempo depois fiz sexo com ela atrás do prédio. Tudo se encaixando perfeitamente. Era apenas o que me faltava na vida. A cocaína me deu mulher, beijo, sexo, vida mais social. Fiz dela uma parceira diária depois das aulas. O Mendes sempre tinha. Passamos a faculdade na boa. Geralmente cheirando à noite. De manhã, somente quando tinha provas. Não deixei de ser bom aluno. Não me sentia viciado. Me sentia potencializado. Depois de seis anos, no início de 1977, quando me bacharelei, me mudei para São Paulo para fazer Residência. Comecei no Hospital das Clínicas, na USP. Depois fui para o Hospital Benedito Montenegro, no Jaedim Ivo.

- O Ivo.

- Isto. Onde o Luiz ficou aquela vez que despencou do morro.

- Fiz residência até 1979. Depois me especializei em psiquiatria e me doutorei em neurologia. Isto já em1985. Quando me reencontrei com a Glória foi em 1981. Ela era professora de escola pública. Daquelas coincidências. Ela foi no Ivo para uma consulta. Eu a reconheci. Marcamos um dia para nos vermos e ficamos. Na primeira trepada, grávida. Tivemos dois filhos, o Leandro em 1981 e a doce Soraia em 1983. Nada de casamento. Nem moramos juntos. No mesmo ano do nascimento da Soraia, porém, me apaixonei pela Cláudia. Tivemos o Luiz em 1984. Foi total maluquice o que fiz. E me casei formalmente com ela assim que soube da gravidez. Fiquei louco por esta mulher.

Enquanto o doutor Carlos Sampaio narrava a sua vida, eu às vezes  olhava para a Cláudia, com o livro aberto, sentada e distraída no sofa da sala.

- A cocaína junto.

- Nesta época eu cheirava quando acordava e depois do trabalho. Se o dia fosse tenso pela manhã, era depois do almoço. Mesmo morando com a Cláudia, ela nem desconfiava, não sabia nesta época de minha dependência.

- Doutor, e quando descobriu que o Cotonete tinha mal formação? Ela me disse que foi aí que o senhor quis que ela abortasse.

- Eu estava era muito drogado. Coloquei na cabeça que ela tinha que abortar. Eu já tinha o Leandro de dois anos e a Soraia com quase um ano. Aquilo para mim era gente saudável. A mãe deles nem sabia da Cláudia e a Cláudia por sua vez nem sabia da Cristina. Era uma confusão sem limites. E para aguentar tudo, cheirava cocaína sem limites. Como disse, eu e a Glória nem movávamos juntos. Ela tinha a casa dela na Penha com a mãe e eu pouco visitava. Alegava sempre plantão. Quer saber? Médico tem desculpa para todas as mulheres. Os filhos foram vindo sem querer. Inclusive com a Cláudia. Ela virou residente no próprio Ivo. Como era doce e inocente e linda a minha Claudinha! Eu me apaixonei por ela instantaneamente. Acredita que fiquei sem cheirar cocaína por quase uma semana por causa dela? A única coisa que me vinha era a sua imagem perfeita em meu coração. Ela é de Mogi das Cruzes. Fez medicina na UMC. Aquela silhueta meio japonesa veio da mãe. Magra como até hoje. Olhos meigos e sempre disposta às pessoas. Saímos quatro vezes e a mulher já ficou grávida. Como disse, acho que na primeira vez. Olha. Guarde um segredo.

- Está bem, doutor.

- Ela iria abortar no primeiro mês. Falou que estava com medo. Disse que estava muito nova para ser mãe e iria atrapalhar sua profissão naquele momento. Temeu principalmente o pai que era um grande produtor no cinturão verde de Mogi das Cruzes e extremamente católico.

No meu íntimo, não foi surpresa o contexto da confusão em que estava toda esta história. E que bela confusão! Foi disto tudo que aos poucos me inspirei para escrever.

- Eu tinha acabado de sair do banheiro quando ela me deu a notícia da gravidez. Ela no meu apartamento, próximo daqui, no Tatuapé. Era domingo. Virei a noite no plantão. Cheirei um pouco de manhã depois do banho. Claro que disse não para aquele absurdo de aborto. Quando eu me drogava, não importa o que o outro pensava ou fazia, minha opinião tinha de ser a contrária. Mantive firme que teríamos o filho. Ela não sabia dos meus outros dois. Quando nos exames pré-natal de quatro meses, foi detectado a má formação no feto, e mesmo assim ela disse que queria ter a criança, eu, bem chapado e doidão, surtei na frente do pediatra, que era amigo nosso, aliás. Lá no São Luiz. Eu berrei que era uma loucura colocar neste mundo pessoas mal formadas. Se ela tivesse dito que iria abortar, eu talvez iria protestar o contrário. A cocaína governava meus desejos e opiniões. Eu estava nem aí. Era ser do contra. Eu vejo que era meu grito inconsciente para alguém me ajudar daquela escravidão. Na abstinência vazia de minha vida, minha cura era cheirar sempre mais e gritar meu desajuste interno. Entrei nos anos noventa com quatro papelotes por dia. De manhã. Tarde. E duas durante a noite. Até quando a Cláudia descobriu minha dependência. Em 1992. Não me impediu e ofereceu ajuda. Eu era um profissional responsável, ainda que péssimo pai. Minha única bronca era com o Luiz e somente Deus sabe lá por qual motivo. Sóbrio eu nem ligava para o menino. Cheirado, me causava ânsia estar ao lado dele.

- Eu me lembro do primeiro dia em que o conheci e suas agressões verbais com o Cotonete. Nunca o agrediu fisicamente?

- Nem ele e nem ninguém. Cheirado, eu falava como fosse outra personalidade em mim. Acordava ou despertava consciente dos vícios que tinha. Mas não tinha sensação alguma de culpa dos meus exageros. Eu apenas cheirava. Mesmo assim, no meio hospitalar, muitos sabiam e admiravam meu trabalho. E aqui entre nós, era grande o número de médicos que metiam o nariz no pó. Acho que por terem sidos reprimidos com aquela loucura desenfreada de ter de estudar, deixavam-se levar pela euforia que a cacaína trazia. O mundo entre médicos escapa o temor e praticamente tudo é possível e liberado. Uma exceção possível é a Cláudia. Criatura adorável e rica. Não me abandonou em minha abstinência. Hoje colhe os frutos de um homem que vive para se dedicar a ela.

E brincando, ficamos na sacada passado da uma hora da manhã. Ouvi com tanta atenção as palavras do doutor Carlos Sampaio que invertemos a comum terapia. Eu falava muito. Ele me ouvia paternalmente. Lembrei que tomei um pé na bunda da Marcela naquele mesmo dia. Eu achava a menina desmiolada. Não batia bem das ideias não. O doutor nem caso deu sobre meu preconceito. Achou desafeto de minha parte e vida que se segue um dia após o outro.

- Doutor Carlos, me perguntou o meu médico, por que não arrisca colocar em escrita seus sentimentos. Inclusive eu dou a você a liberdade para colocar em suas próprias palavras tudo o que eu falei sobre mim mesmo, sobre o Luiz, sobre como detectei seu problema neurológico, como acompanhou meu processo de abstinência e livramento da cocaína, como saiu da favela ainda que a tenha tão enraizada dentro de sua alma. Creio que a Cláudia ficaria muito feliz em ler com as suas palavras sua visão de mundo, fora de tudo isto. Desde aquele fatídico dia e que falei "quem é o pretinho?". Um dor que faço questão de sentir, relembrar, reviver até a minha morte.

Eu não soube o que falar. Os cookies já tinha sido comidos todos. A jarra de suco secada. Uma briza tão gostosa batia nos meus braços. Ergui as mandas longas da camisa. Meu rosto e orelha também gelados. Não fazia frio. A noite tem a vontade de dizer que o dia se foi. Conforme o dia volta ela vai mais a fundo em nossos sentidos para marcar presença.

- Por que não dorme aqui, Carlinhos, me pediu dona Cláudia.

- Estou sem roupa.

- Amanhã não trabalha. Usa do Carlos.

- Prefiro ver meus pais como estão. Sem dizer que o doutor Carlos Sampaio me inspirou algo que possivelmente farei hoje mesmo assim que chegar em casa.

- São quase duas da manhã. Está sem carro, ele me disse. Eu levo você.

- Somos visinhos de quadras, dona Cláudia. Não há necessidade.

A gentileza não era a falta de opção. Era onde o coração dela queria estar naquele momento. Não tinha dificuldade alguma em dizer não a eles. Apenas preferi ir para casa. Ver meus pais, meus irmãos. Estas coisas que me dão sentido na vida. A Marcela teria sido um pesadelo não sonhado. Em boa hora a viagem dela para trabalhar na Europa em 2014. Em boa hora eu não ter o peso do término hoje. Em boa hora ouvir o doutor ao longo de mais de duas horas e, por fim, a ideia de escrever. Meu coração grita uma liberdade complicada. Não é a falta de nada. Uma ausência pessoal esquisita. Talvez escrever seja uma alternativa. Ao invés de falar para meu neurologista sobre minhas emoções, dialogo com minha própria consciência, eu vejo o que deixo escapar o que me oprime.

Na rua, caminhava lentamente. Antes cumprimentei o seu Josias pelo nome. Falei alguma palavra da noite e ele me disse "Deus te acompanhe". Saí discretamente pelo portão. A calçada era a mesma de vinta anos e por algum motivo chorei. Tinha saudades de Cotonete e me veio o desespero da imagem dele rolando a daleira do escadão. Andei vinta minutos cabisbaixo. Sem paletó, que deixei na casa da dona Cláudia e sem a gravata. Camisa aberta para fora da calça.

- Parado!

Já imaginei pelo girofexe

- Isto é hora de preto andar em bairro de rico. Mão a para acabeça.

Obedeci. Me revistaram.

- Antecedentes?

- Não.

- E a droga?

- Não tomo.

Passaram um rádio se procuravam algum suspeito com minhas características na regiao. Negativo. Pegaram meu RG. A funcional do banco.

- Você parece preto decente. Boa genta e trabalhador. De onde vem?

- Casa de amigos.

- Mora onde?

- A duas guadras para frente.

- Fica mal não, negão. É para a sua segurança. Entra na viatura. Vamos deixar você em casa.

- Posso ir andando? Preciso respirar um pouco antes de chegar em casa.

Me liberaram. Pediram desculpas. Partiram. Sentei um pouco no meio fio da rua. Quis dizer tantas coisas para mim mesmo. Não sei se era fraco, forte ou consciente. No fundo a hora marcada do Cotonete me ensinou a ter paz na ignorância e na truculência. Levantei-me. Havia muita polícia na região. Fui para casa sem ser mais importunado naquela nadrugada de sábado, maio de 2015. Minha mãe sono bem leve. Trouxe ainda um pedaço de bolo. Ela achava sempre que vivia cheioa mulheres. Cheio de fome, porém. Tinha razão a minha fome. A camida dela me abria o apitite. Ainda hoje peço pada fazer pé de galinha cozida.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Capitulo 3

- Pode entrar, meu filho. A casa é sua.

- Obrigado.

Eu olhei para o Cotonete e nada. Nada de nada. Nada de arrogância. Nada de prepotência. Nada ser valente, destemido, abusado, ousado. Eu conhecia a minha mãe. Nem brinquei. Olhava procurando os olhos do Cotonete que estavam no chão. Pensei que a pobreza realmente intimida o rico da mesma forma que a riqueza intimida o pobre. Ontem me senti fora do meu espaço no duplex. Hoje é o dia dele. Ele entrou com uma muleta só. Dona Cláudia consentiu que somente ele dormiria no meu barraco com a condição de ela levá-lo até lá e conhecer a minha mãe. Alguns palavrões saíram de sua boca. Eu concordei na hora com a dona Cláudia. Ele mentaltamente para mim: "filho da puta". Nosso nível de comunicação já estava mental. A mãe do Cotonete parou o carro em frente à favela. Ela tinha um Ford Ranger verde escuro 1995. Impecável. Talvez maior e mais espaçoso do que meu barraco. Mais confortável, sem dúvida. Cruzamos a pontinha do córrego. Dona Cláudia tinha algo, ou ainda tem, muito positivo em sua vida de médica. Ela sempre foi uma profissional muito atenciosa. Talvez pela condição do Cotonete. Via nas outras crianças que chegavam ao hospital como futuros adultos sem hora marcada. Ela trabalhava em hospital público e no particular onde o doutor Carlos Sampaio, seu marido, era diretor geral. Tinham duas clínicas particulares também. Por duas vezes, incrivelmente, ela teve de parar para tomar dois cafés na favela antes do meu barraco.

- Mas doutora! A senhora por aqui?

Ela vestia branco. Saiu do hospital para nos pegar na escola. Nos trazer para cá. E voltar.

- Está fazendo visita em casa de doente?

- Não. Não.

O sorriso nítido de simpatia e, claro, medo e timidez. O esquisito, porém, foi que ao olhar para o Cotonete, que estava a alguns passos à frente ao meu lado, dona Cláudia se recompôs como uma mãe qualquer e disse bem sonoramente.

- Vim trazer meu filho na casa de um amigo...

Casimira, a mulher que a cumprimentou, olhou para mim com espanto. Nem liguei. O desconforto é a falta de hábito, de costume. Ainda assim, parou. E paramos. Chamou a Casimira dona Cláudia para conhecer seu barraco. Tomou café. Era passado da uma da tarde. O almoço feito. Ofereceu. Ela agradeceu e disse outra hora. Ficamos esperando na porta. As coisas dentro da favela são tudo com pouco espaço. Ou se está dentro ou se está fora. Não existe meio termo. Também se pode estar em cima ou embaixo. Geralmente quem mora lá está tumultuado, ou melhor, no meio da multidão. E assim fomos. Antes do meu barraco, mais outra pessoa reconheceu a doutora. Simpática. Disse o motivo. Tomou café. Agradeceu. Enfim, chegamos. Outra coisa interessante de dona Cláudia era a falta de brilho externo. Havia uma linda aliança em seu dedo esquerdo, com um pequeno diamante. Um discreto par de brincos. E só. Admito que em 1995 ela foi a primeira pessoa que vi com um celular. Era médica. Tinha pager e bip também. Reflito comigo por que ela? Por que ela teve um filho com hora marcada sendo sempre uma pessoa tão boa, tão dedicada, tão humana, tão solidária e solícita para o próximo? A conclusão a que eu chego é que dona Cláudia teve o melhor filho que uma mãe pode ter. Nossa hora é questão de tempo. Cotonete era o cara! Aquele cara que deixava a realidade bater em seu peito e ele a dominava. Eu admirava demais.

- Pode sentar, meu filho. Qual é seu nome?

- Luiz Gabriel.

Eu não teria coragem de falar para a minha mãe que eu o chamava Cotonete.

- Senta, Luiz Gabriel. Já comeu pé de galinha cozido?

Eu olhei para ele. O filho da puta quase disse que sim. Viu que seria mal negócio.

- Não. Nunca comi.

Para quem nunca comeu, ele levou para barriga uns cinco pés de galinha com arroz e feijão. Minha mãe era a mulher do tempero. Chupou todos os ossinhos. Deixou-os na beira do prato. Disse depois que o almoço foi o melhor da vida dele. O caldo do pé de galinha cozido em cima do arroz fez o Cotonete lamber o prato. Ele me viu lamber o prato. Meus irmãos também. Deve ter achado normal. Meu pai dormia ainda. Havia chegado do trabalho por volta das nove. Minha mãe come pouco. E lentamente. Mastigava como estivesse refletindo a vida. Ou, para uma imagem melhor, seria como escrevesse um romance, do mesmo modo como eu o faço agora. Aliás, por sugestão do doutor Carlos Sampaio, o pai do Cotonete.

- Babão, vamos andar na favela?

- O nome dele é Carlos, Luiz Gabriel. Nada de apelido aqui em casa. E aqui não é favela. São casas onde moram pessoas que buscam um espaço melhor.

- Desculpe-me, e abaixou a cabeça.

Minha mãe tinha destas. Silenciosa. Cuidava dos três filhos. Mas consciente que fazia inveja a qualquer sociólogo. Finalmente, pela primeira vez, alguém domou este espírito indomável do Cotonete. Desculpar-se para alguém tendo hora marcada ou é medo - e eu tenho certeza de que não é medo - ou respeito, mas ele não é bem o sujeito que respeita. Entendi então que ele saiu do seu ego e entrou do ego da minha mãe. Naquele momento, inteligente que é, Cotonete deu por si que a vontade da mulher que acabou de servir o almoço, mãe de seu amigo, dona do barraco, educada e gentil deveria prevalecer.

- Vamos andar na favela, Luiz Gabriel, ironizei desta vez.

- Cudado com os mal-elementos, gritou a minha mãe quando já uns dez passos do barraco.

- Sua mãe é legal, Babão.

- A sua também é, Cotonete.

Ele andava letamente. Acho que mais do que o normal com a desculpa da muleta. Ele já era perneta. Ficou mais. Eu acho que ele desejava sentir a certeza de cada barraco e seu metro quadrado apertado. Os rostos pardos. Alguns pretos e nordestinos.

- Não tem branco neste porra, Babão?

- No seu duplex, de preto eu e a dona Fátima.

- O porteiro noturno e os seguranças. A coisa é realmente foda.

Nossos papos eram mais ou menos assim. Se um vinha com uma observação, o outro ou xingava ou amadurecia a reflexão. Quem me dera se hoje, aos 34 anos, eu pudesse entender que minha própria inteligência superava a média da percepção das pessoas ao meu redor, fossem elas ricas ou pobres? A verdade era que eu tinha um problema de burrice que me escravizava na quinta série dentro do meu cérebro. Deste problema falarei mais para frente. Cada qual com o seu. O meu problema era na cabeça; o do Cotonete nos ossos. Para ilustrar um pouco, o meu problema era no software e o dele no hardware. Ele se foderia antes na hora marcada, e eu me foderia a minha infância toda e nesta adolescência até o doutor Carlos Sampaio descobrir.

- Vamos subir aquele escadão? - pediu o Cotonete.

- Vamos.

Desta vez foi diferente. Era a cada degrau uma tortura. Moleque tinhoso, destemido, cheio de si, os passos não acompanhavam os degraus de terra. E era íngrime. Eu empurrava pelas costas e às vezes passava a mão na bunda dele.

- Vai tomar no cu, Babão! Caralho!

E parei de zuar. Ele poderia cair. Foi tempo até chegar ao topo. De lá dava para ver a porra da torre do prédio no Anália Franco. O prédio onde ele morava. No fundo, no fundo, tudl aquilo era a mesma São Paulo. Alturas não tão semelhantes. Do alto, porém, irradiava a certeza de que havia vida lá embaixo. Foi a mesma sensação que eu tive quando vi um vídeo que mostrava o planeta Terra em rotação. Será que o universo compreende que há vida neste ponto? Eu era burro para prestar atenção. Quando entendia, me afundava em reflexões que reviravam minha alma e minhas certezas ao avesso. E gosto daquela canção para marcar minha cidade "do avesso do avesso do avesso do avesso do avesso". Por causa de Sampa, eu fui conhecer o cruzamento da Av. Ipiranga com a São João. E foi no mesmo dia em que o Cotonete quis virar homem com uma prostituta. Mais para frente narro como foi.

- Babão, fico mais feliz vendo São Paulo aqui do alto do que da varanda da minha casa.

- O alto da sua casa dá medo, Cotonete.

- Não é isto, caralho. Lá é comprado. Um homem toma a decisão e faz o prédio para ganhar dinheiro. Compra quem pode. Você pode. Você compra. Você entra. Sobe. E vê. Aqui praticamente minha primeira escalada.

- Agora, você pegou pesado falando que gostou do pé de galinha cozido.

- Gostei pra cacete. Vou pedir para dona Fátima fazer em casa. E você vai comer pé de galinha em casa.

Ficamos no alto do morro, em cima da favela, por horas. E não faltou assunto. A consciência do estado "terminal" dele veio há dois anos, em 1993. Tinha nove anos. O defeito na perna sempre existiu. Esta condição com hora marcada também. A mãe, em lágrimas, narrou para ele, que sempre foi muito certinho, cauteloso, bom aluno, exemplo na escola particular. Ele me contou detalhes que vou poupar as pessoas para não gerar aquela angústia existencial do caralho.

- E seu pai?

- Ele nunca me tratou como filho. Nunca me pegou na escola. Nunca me levou para o médico. Nunca fez porra nenhuma para mim.

- E o que foi aquilo ontem, Cotonete?

- Desde que eu resolvi mudar para uma escola pública, ele se revelou filho da puta também. É me ver e me encher o saco, daquele mesmo jeitinho. Um cusão do caralho.

- Fala assim de seu pai não.

- Vai se foder, caralho. Aquilo é pai? Seu pai está dormindo depois de trabalhar a noite toda. Deve acordar e sorrir para seus filhos. O meu acorda. Vai ao banheiro. Volta alterado igual louco. E me xinga até eu sair de casa.

- Cacete.

- Babão, crise zero para mim. O bom de ter hora marcada é que todos neste mundo tem. E que se foda. Eu aproveito meus dias. Ele quer perder o tempo dele me agredindo. Eu nem ligo. Aprendi a me bastar e me realizar neste mundo do cacete.

- Se não fosse eu, você já teria mudado de escola no primeiro mês, Cotonete. Iria apanhar todo dia do jeito que você é folgado.

Fiquei esperando uma resposta e nada. Ele me deixou falando. Todo este papo foi sentado na terra. Do alto. Ele com o gesso. Eu pernas esticadas. Às vezes deitávamos. Quando comecei a tomar picada de pernilongos era o momento de descer.

- Vamos descer, Cotonete. Já está ficando escuro.

- Cara, vamos dormir aqui.

- Minha mãe me mata se não for para casa.

Ele nem pensou. Pediu ajuda para se levantar. Algo que eu não sabia era que o silêncio dele era uma dor abdominal insuportável do lado esquerdo. Da barriga para as costas. Quando se levantou reclamou da dor. Nem dei por mim.

- Vai na frente, Babão. Eu me apoio em você.

Lá em baixo, uns vinte metros, a favela começa a clarear com os seus gatos. Luzes amarelas, pequenas, de barraco em barraco. Do alto dava para ouvir panelas de pressão. Dezenas. E o falatório geral. Não tinha pancadão em 1995.

- Segura aí.

No primeiro lance do degrau, tranquilo. No segundo, o Cotonete colocou muita pressão no meu ombro. Eu iria xingar para ele parar de zueira. Quando olho para trás, sem chance. Ele já estava com os olhos fechados e em dez segundos rolou na escada de terra como pedra. Eu gritava igual louco. O moleque indo, batendo costas, pernas, cabeça. A muleta - era uma apenas - ficou largada lá em cima. Meus gritos trouxeram a favela toda para o escadão. Cotonete desacordado. Pedi ajuda e logo pegaram ele. Ele era levinho. Foi o seu João, um negro forte, dobro do meu tamanho. Carregou o moleque no colo. Eu fui atrás. Nem passei no meu barraco. So cruzei. A favela toda comentando, curiosa, querendo ver, saber, entender, discutir, polemizar. Entramos na Brasília velha do seu João. Cotonete desacordado. Ela pegou no tranco, empurrada pelo Pedro Ferro Velho.

- Seu João. Acelera.

- Calma, moleque. O Iva está pertinho.

Iva é o nome popular do Hospital Benedito Montenegro. Como fica no Jardim Iva, todo mundo chama de Iva mesmo.

- Minha mãe é voluntária lá, disse o seu João.

Eu chorei no caminho todo. Assim que ele virou a primeira esquina, eu perguntei.

- Está longe, seu João?

A Brasília velha dele não andava mais do que 40km/h. A sensação de que não saía do lugar. O Pedro Ferro Velho foi junto na frente. Era magro. Mas para mim ele fazia peso e o carro não andava. No banco de trás, Cotonete com a cabeça no meu colo, todo estourado, mas eu via que respirava. Eu colocava a mão na barriga dele. Via mexendo. E em momento algum tirei.

- Falta muito, seu João?

- Um quilômetro. Acho que nem isso
Fica próximo a Barreira Grande
É perto de uma escola. Calma. Já estamos chegando.

E demorou horas para mim o que levou minutos. A maca veio. Num primeiro momento sem muita pressa. Meu desespero acelerou o processo. Eu gritei que ela o filho da doutora Cláudia. Ele é filho de médico e de médica. Ajuda o menino. Salva o menino. Antecipo que meu desespero foi em vão. Em um hora, Cotonete estava bem. Falando. Xingando até o médico que o atendeu e que conhecia a sua mãe. E falando em mãe, eu fui com o seu João e o Pedro Ferro Velho dar a notícia do filho. Nunca. Nunca me senti tão culpado e com vontade de não existir. Seu João e o Pedro Ferro Velho ficaram na Brasília na frente do prédio. Toquei o interfone. A dona Cláudia atendeu com aparente calma. Me disse que já sabia. Ligaram para ela. E que na verdade foi mais um susto e um braço quebrado. Ela brincou com a situação. Agora, além de perneta é maneta. Me disse para ficar tranquilo que estava já indo para o hospital. Pediu para eu esperar e irmos juntos. Falei para o seu João. Muito gente boa ele. Agradeci. Ele ofereceu sempre ajuda. Quando foi embora, sentei no meio fio, sujo, mulato, e comecei a chorar demais.

- Ei, moleque, era um carro de polícia, que faz aí? - perguntou o PM.

- Nada não, senhor.

- Vai. Levanta, então. Pode circular. Vai. Circula.

Nem argumentei. Obedeci. Eles ficaram me olhando sem parar. Eu fui indo para longe do prédio sentido Sapopemba. Dona Cláudia não saía com o carro. Quando dei por mim já estava longe. As luzes do carro da polícia por algum motivo me seguraram as lágrimas. Tive de voltar a ser homem. Fui a pé. Até o hospital. E lá já estava dona Cláudia. De longe a vi. Depois fui a pé para casa. Cheguei umas nove horas da noite. Talvez mais tarde. Foi a segunda vez na vida que cheguei tão tarde na favela. A primeira foi justamente ontem, quw fiquei até tarde na casa do Cotonete. Minha mãe já sabia do moleque no hospital. Meu pai já no trabalho. Eu, olhos vermelhos de lágrimas e cansaço e preocupação, nada sabia o dizer a minha mãe. E para terminar a noite, quem aparece na porta minutos depois foi a dona Cláudia. Entrou pela segunda vez na vida em uma favela num único dia. Ela disse para a minha mãe que Cotonete estava bem, quero dizer, disse Luiz Gabriel. Um braço quebrado. E pediu um favor.

- O Carlos pode dormir em casa hoje?

Minha mãe sempre sábia, olhou meus olhos.

- Claro. Pega a sua escova de dentes, Carlinhos. Uma roupa limpa. E não perde aula amanhã. Toma banho antes de dormir.

Saímos do meu barraco. Antes, porém, passamos no barraco do seu João. A mãe dele, que fazia trabalho voluntário no Ivo, 78 anos, reconheceu a doutora. Ela estava sentada na porta. Dormia tarde. Corpinho bem fininho, totalmente oposto ao seu João, de quase dois metros. Ela se surpreendeu com a médica chamando seu filho. Falou do coração bom dela ao seu João, que nada disse, literalmente. Somente ouviu respeitoso. Ao final, fomos para o duplex. Tomei meu banho. Nesta noite eu dormi na cama mais confortável que um ser humano pode ter. Imagine a sua alma sem o corpo para o aprisionar. Minha sensação naquela cama. Alma livre sem corpo para aprisionar. Boa imagem. Deve ser a sensação de uma cama boa e de uma alma presa. Antes, porém, fui um pouco ousado e perguntei do doutor Carlos Sampaio.

- Ele está no hospital. Não vai sair de lá enquanto o filho não tiver alta.

- Dona Cláudia. Posso fazer uma pergunta?

- Sim.

- Por que o pai é tão agressivo com o filho?

Ela olhou dentro dos meus olhos. Relutou. Depois, por fim, me disse a verdade que estava por trás daquela aparência toda. Concluí que todos seres humanos somos máscaras. Máscaras múltiplas num grande carnaval que pode ser feliz ou não. Eu fui atrás da minha felicidade desde então.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Capitulo 2

Capítulo 2

Saí do banco por volta das duas da tarde, sem dar muita satisfação. A desculpa foi sobre minha noiva que voltara da Europa há dois dias. Eu nem fui pegá-la no aeroporto. Maio de 2015. Não me vem o dia do mês, mas sexta-feira na semana. Marcela era ainda minha persistente noiva por mais onze distantes meses. Cancelamos o casamento no ano anterior já com a data marcada.

Iríamos nos casar no final de novembro de 2014. E a razão era questão astrológica, numerológica e cabalística da menina. Nunca fui muito simpático a esta maluquice dela. Me cansava ler horóscopo e todo mundarel esotérico que ela trazia diariamente. Como para ela era importante, deixei a Marcela escolher o ano, o mês, o dia e o horário e todo misticismo possível. Teria que ser às 18:35. Ela entrando na igreja com o pé direito. E mais do que isto. Teria de ser em cinquenta passos até tocar a minha mão direita. Um delírio de casamento e de toques. Detalhes e mais detalhes conversados e planejados e aceitos. Não sei se seria feliz com ela. O tempo mostra que não.

Cinco meses antes, a novidade de nossa indireta separação. Ela, jornalista, fluente nos idiomas italiano e inglês, tinha sido convidada para trabalhar em Londres como correspondente internacional. Um periódico de meio porte de Londres. O salário pequeno. O aluguel pago. O sonho de trabalhar no exterior como jornalista realizado. Ela não havia sido a primeira opção do tablóide. Nem sei se sabiam de nosso casamento, embora tenha sido indicação do irmão dela, o Rafael que morava há anos por lá, a quem visitamos uma única vez. Eu, na verdade, não gostava dele e ele não gostava da minha cor. E a família dela não gostava da parente branca envonvida com um mulato engravatado. Sabe estas coisas que achamos que o amor supera e que no fundo é tudo baboseira romântica? Apenas toleramos os preconceitos e as ignorâncias com um baita exercício de humanidade porque temos a capacidade de tolerar, mesmo que o ódio predomine no coração dos recalcados. Não deixa de ser uma boa coisa a tolerância em si. Ela ensina-nos a não agredir.

Marcela me disse por mensagem que ela foi apenas a terceira opção das escolhas fracassadas. Confirmou no dia seguinte para mim, mas aceitou na hora para o jornalzinho de Londres. Nos encontramos, claro, para falar sobre. Me disse que me amava. E como chorou. Eu inclusive argumentei dubiamente que somos livres. Na vida, ao final, seremos sempre sozinhos como recompensa de nascer. Buscar o que nos preenche internamente obriga a tomar posições, decisões e escolhas muitas vezes conflituosas e até desesperadoras. Na mesa do restaurante no Reserva Cultural na Av. Paulista:

- Como eu amo você, Carlos, e passou a sua suave mão no meu queixo sem barba.

Marcela não estava desesperada. Ao contrário. O conflito interno dela foi puro charme de empolgação e júbilo. Acho até que as lágrimas por cancelar nosso casamento em 2014 se misturaram com a oportunidade feliz de se mudar como jornalista para o Velho Continente. Eu mesmo senti um leve sorriso de contentamento quando me deu a notícia. Como disse, me mandou uma mensagem empolgada no domingo à noite. Queria pessoalmente me dar detalhes. E no outro dia nos vimos.

Segunda-feira, 09 de junho, nos encontramos no Reserva Cultural. Tive uma rotina tranquila no banco que eu gerencio, com bons resultados. Sempre digo. Bancos e beleza são minas de ouro no Brasil. Nós comemos algo. Assistimos a um filme. Andamos pela Paulista à toa, sem rumo, sem chegada.

A data me lembra bem porque na quarta-feira, dia 11 de junho, haveria uma Missa de dez anos da morte do Cotonete, falecido num dia frio e ensolarado, em 2004. Claro que vejo o moleque em muitos dos meus passos. Inclusive nesta sexta vou falar com o doutor Carlos Sampaio que me chamou de pretinho pela primeira vez. Até hoje se arrepende. Passou a me chamar de doutor Carlos. Não há como esquecer o aleijadinho folgado, destemido, fulminante e contagiante que me lembrava sempre que a vida era uma hora marcada. A dele fora às 15:50, no dia 11 de junho de 2004. Oficialmente, parada cardíaca e respiratória, nas mãos de dona Cláudia, que estava sozinha na duplex no Anália Franco.

Marcela nunca o conheceu. Já cansou de ouvir as histórias, que lhe narrei. Eu iria chamá-la para me acompanhar à Missa. Achei que poderia interpretar apelativo, já que ela toda eufórica pelo jornalismo no tablóide no exterior. Mantive meu silêncio sobre a Missa. Amo demais o Cotonete. É que não devemos macular nossas imagens e momentos mais sagrados de quem amamos com quem não está em harmonia e em cominhão com nossos sentimentos. Marcela partiria em duas semanas para Londres. Eu não a levei ao aeroporto de Cumbica. Quer saber, eu não tinha coragem de falar para ela, mas foi como um término prolongado.

Nesta sexta-feira, dia do meu rodízio, eu saí do banco mais cedo, não para matar saudades da Marcela. Queria colocar um elegante fim ao noivado distante já que não nos víamos há quase um ano.

Sobre a Missa para o Cotonete, do dia 11 de junho de 2014, dez anos após seu passamento, fomos eu, dona Cláudia, o doutor Carlos Sampaio, minha mãe e meu pai, seus dois irmãos por parte de pai. Uma singela missa na Capela de São Francisco, no Largo São Francisco, no centro de São Paulo. Eu a encomendei. Eu a sinti. Eu a relembrei. E relembrarei.

Já no dia 09 de junho de 2014, Marcela me disse temendo escapar a euforia explícita.

- Carlos, a proposta me veio ontem à noite. Eu falei no mesmo momento que sim. Uma oportunidade única na vida. Mas dependo do seu consentimento.

Ela silenciou. Imagino que casar é daquelas oportunidades quase únicas na vida, ainda mais com quem se ama e se é amada. Tudo aparentemente. Ela lembrou do nosso casamento. O único impedimento real no imaginário dela. Dos males os melhores é que convite algum tinha ainda sido entregue. Somente o aluguel proporcional do salão, a reserva proporcinal da igreja, alguns meses do buffet. Nem o vestido de noiva. Dava para tomar na boa este prejuízo por quem não ama mais você. O prejuízo seria muito pior depois.

- Marcela, pode confirmar o sim e vai.

Ela chorou. Voltou a mão ao meu queixo. Sorriu tão rapidamente que eu dimensionei o amor que a pessoa possui na verdade pelos seus projetos de vida. Sua carreira profissional. Ela andava na crista dos seus mais importantes sonhos. Ninguém resiste à ambição do próprio crescimento.

Depois ela me olhou e perguntou se eu a amava acima de tudo a ponto de  deixá-la ir e adiar o casamento por um tempi, sem esquecê-la. Eu disse que sim, e menti. Neste momento diria qualquer coisa em que o sim e o não fossem necessários. As escolhas batem muito em nossa porta.

Às 16:00 horas no mesmo Reserva Cultural, em maio de 2015, nesta sexta-feira que saí mais cedo do banco, fui à Paulista e fiquei próximo à escadaria da Gazeta. Nos beijamos timidamente. Fui ao simpático restaurante. Sentamos. Ela me disse do trabalho que estava amando. E depois de um hora, ela terminou comigo. Desta vez sem lágrimas e bem direta. Eu concordei. Pressenti algo no ar e tive de matar a minha intuição:

- Marcela, somente uma curiosidade. Tinha que ser exatamente às 17:00 você terminar comigo e neste mesmo dia? Algo cabalístimo? Numerologia?

- Pode ser que sim. Provavelmente sim

Ela se levantou. Passou a mão na minha cabeça, para deixar ou tomar as minhas energias. Saiu com salto alto, calça preta justa e um camisa de lã rosa, um pouco larga, mas no estilo. Fazia um leve frio. Eu paguei a conta. Aproveitei para ver um filme francês. Terminou a seção umas oito horas. Peguei meu celular e liguei para meu neurologista. Eu vivia perturbado nos últimos meses.

- Doutor Carlos Sampaio. Boa noite. Ocupado? É o Carlos.

- Um pouco, doutor Carlos, mas pode falar. O que aconteceu?

- Tem horário para uma consulta hoje à noite?

- Que horas?

- Agora.

- Aparece então às dez horas. Estou montando um guarda-roupa que a dona Cláudia insistiu lindo. Me fez desfazer do velho e comprar este novo.

- Precisa de ajuda?

- Jamais. Sou neurocirurgião. Tenho que saber montar estes pré-moldados com a mesma facilidade que abro e fecho um crânio. Já estou terminando, aliás. Aparece.

- Dez horas em ponto.

- Até mais doutor.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Casa comigo?

- Casa comigo amanhã?

- Amanhã o cartório não abre, amor.

- Casa com o seu coração. Cartório casa, mas também separa.

- Caso!

A dor. O sofrimento. A solidão

Bom. A dor. O sofrimento. A solidão. A saudade. Tudo que corroi deve existir como uma doença que precisa de tratamento. Tratar. Cuidar. Dar atenção. Admitir. Dialogar. E como é difícil. Não é dor de dente, porém. É dor na alma. Não se arranca. Cuidamos dela. Ela vai se sentir amada, querida, adulta e quando menos espera, deixará você. Sério? Os psicólogos aceleram o processo. Os medicamentos anestesiam. Já minha solução é a do escritor. Paciência. Conformidade. Tempo. Aceitação. Resignação. Estoicismo. Leitura. Vida. Existência. Agradecimento.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Poema

Eu permito suas recaídas.
Quando recair ou mesmo cair que seja em meus braços.
Permito as lágrimas, como já vi e senti, e só acho belo o sentimento para fora.
Eu permito porque a vida permite praticamente tudo. Ser feliz e ser triste. A vida permite caminhar ou parar. A vida permite tantos erros que parecem que não haverá mais sobra de contentamento. E a vida permite nossos contentamentos e neste ponto a mesma vida que permite tudo, nos dá uma bela lição.

Solidão e está sozinho são meia vida. Tudo que a vida nos permite, o outro pode nos completar humana e emocionalmente. Porque a vida permite que amemos, que cuidemos, que

21

Feliz Aniversário, Ju. 21 anos hoje. Embora me passe tantas palavras em minha cabeça neste momento, a cada tecla aqui do celular, eu hesito em escrever. Raras vezes fraquejo e agora meus dedos trêmulos. Mas escrever para você me deixará um pouco mais feliz e quero compartilhar este seu doce momento.

Se permite falar de mim, eu fiz 21 anos em 1995, quando você nasceu. Em fevereiro eu saberia da minha aprovação na USP e no Carnaval fiz um Retiro Espirital que mudaria minha vida.

Dentre tantos fatores que envolvem uma vida sem rumo como a minha na época, entrar na USP foi das provas de que Deus definitivamente existia e cuidava de mim. Aos 21 anos, eu ainda era tão inocente, bobo, idealista e praticamente puro que o lugar onde mais me deixava feliz era um quarto, isolado, com meus livros, ouvindo música clássica, sentindo o mundo essencialmente na minha solidão desejada.

E, basicamente, foi nos meus 21 anos, ao longo de 1995, que iniciei o processo de libertação emocional, quando o mundo pouco me atingia com as suas friezas e injustiças e julgamentos. Passei a ser homem disposto a jamais abaixar a cabeça, sem perder o amor pelas pessoas: uma marca pessoal esta de cuidar e querer bem, ainda que eu sofra.

Seus 21 anos neste 2016 é a sua libertação definitiva para a sua vida e cheia de alternatizas porque você é madura e consciente. Você vai crescer e ser muito feliz. Você descobrirá a partir de agora muito mais do que os pés no chão na sua vida. Sua caminhada será firme e dinâmica. Cada subida de responsabilidade atrairá mais e mais encantos e admiração. A maturidade e personalidade junto ao amor pelas pessoas é uma combinação arrebatadora. E você tem tudo isto. Maturidade. Personalidade. Amor. E vai arrebatar desde animais, que tanto ama, a corações humanos, que tanto a amarão.

Sim. Claro que você vai casar! E vai ser muito feliz. É seu instinto mais belo: a maternidade e o cuidado. Não há coração que resista.

Os anos simbologicamente nos separam 21 anos. Os mesmos que você tem agora. Os mesmos que eu já tive em 1995, que foi o ano de seu nascimento físico foi o ano de meu nascimento espiritual, 1995, quando pude me ver gente e homem. E continuo assim. E você continuará.

Que Deus sempre a guia como nos guiou em nossas vidas tão no limiar emocional de tudo desde maio de 2014. (Acredite que para cada palavra que escrevo, eu paro para respirar e refletir em tudo). Sua mãe, pai e alguns amigos a querem feliz. Me inclua, ainda que distante, neste sincero rol. Quero-a feliz e sei que você já é muito feliz.

Um grande beijos. Feliz Aniversário, Ju. Não consigo dizer mais nada. Senão sentir. Agora. Fique com Deus.

"Porque o forte dela é sentir as dores dos outros..."

Desapego

O Desapego do Passado (a dor)

Desapegar do passado? Sofra. Não porque o melhor remédio e a única solução. Porque desta forma não jogará todo este sentimento no seu inconsciente, reprimindo-o.

Ah, chore sempre que possível e por vezes arrependa-se. Dê sua mão à solidão, abrace a vontade passada, bata nas costas da saudade, chame a tristeza para um papo sem palavra e sofra com estilo. Mas, claro flertando com a dor como fosse sua única amiga. (Que horror!).

Amigos podem viver muito bem ao nosso lado, ainda que nos façam sofrer. Ainda mais amigos que amamos ou que amávamos e viraram amigos. Eu que ironicamente nunca acreditei na amizade entre homem e mulher! E hoje creio.

Devemos crer na dor como uma amiga para cuidar da mesma forma que cuidamos de nós mesmo, ainda que não nos amemos na dimensão que deveríamos.

Cuidar de nossa dor, alimentá-la até, paradoxalmente, nos desapegará do que está em nós sem mais a permissão de estar. O desapego é tirar o que não nos pertence mais e permanece enraizado lá no inconsciente. Existe melhor definição para a dor emocional?

Algumas vezes, como desta, sou proposto a escrever sobre algo. Uma amiga minha que está no exterior pediu. Desapego. Eu gosto disto. Desafio. Eu peço a alguém um tema sobre o qual gostaria de ler por vezes. O escritor, afinal, que fala de si mesmo é como um pano molhado na chuva. Nem seca, nem é pano. Só absorve e encharca. E dá trabalho depois. Desapego. Seja a dor, a saudade as mãos e você o pano molhado. Deixe que torça você.

Bom. A dor. O sofrimento. A solidão. A saudade. Tudo que corroi deve existir como uma doença que precisa de tratamento. Tratar. Cuidar. Dar atenção. Admitir. Dialogar. E como é difícil. Não é dor de dente, porém. É dor na alma. Não se arranca. Cuidamos dela. Ela vai se sentir amada, querida, adulta e quando menos espera, deixará você. Sério? Os psicólogos aceleram o processo. Os medicamentos anestesiam. Já minha solução é a do escritor. Paciência. Conformidade. Tempo. Aceitação. Resignação. Estoicismo. Leitura. Vida. Existência. Agradecimento.

A chave está aí. Ser grato. Para quem pode. E para quem realmente acha que aguenta.

Melhor o Risco de uma União Prematura

Não creio em maldade nua, crua e direta. Creio em egoísmo com boa pitada de vaidade pessoal e infatilidade. Quem disse que é fácil a cultura do altruísmo? Por isto, o que me dói o coracão é testemunhar de longe e de perto muitas pessoas se dedicarem a um relacionamento por anos e, ao fim, para quase nada.

Sabe que neste particular um divórcio tem seu certo 'charme' traumático? Algo existiu. Não penso tanto nos homens. Penso mais nas mulheres. Viver anos ao lado de alguém sendo que do namoro inicial ao esfriamento ao longo do tempo, quase nada se cultivou, pouco se cativou, e as memórias seu tanto estáticas.

Pessoalmente, melhor mesmo encarar de frente um risco maior e imediato de uma união prematura a uma eterna e infrutífera busca de segurança. E como deve machucar internamente o coração o sucesso pessoal sem um pouco daquela desordem desejada internamente, aquela desordem que apenas uma vida familiar com filhos, marido, mulher e bichos tem! Eu falo e insisto como o Pe. Fábio de Melo. "Casa logo. Leva para casa. Amores perfeitos não existem." E complemento: acho pouco justo neste sentido "levar" por anos uma pessoa sem dar a ela parte ou a totalidade de seus sonhos, em que você a completa, porque somente você tem a outra parte que a completará. Volto ao início. Não é maldade. É egoísmo e infantilidade. E eu sei que muitas vezes nada se pode fazer senão esperar... Esperar. Uma espera que para mim deve doer. E muito.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

E se eu abandonar você?

Primeiramente. Você nunca irá me abandonar. No dia em que você partir, certamente não foi abandono, porque abandono na verdade é um modo desesperado de fugir de alguém. Você não me abandonará, porque não fugirá de mim.

Eu verei, neste sentido, que na verdade você encontrou alguém ou algum motivo melhores, e é justa uma troca para o melhor.

Minha cabeça humanista prefere a felicidade alhei à vaidade pessoal. Não digo que vaidade é amor próprio. Eu mesmo tenho muito amor próprio sem ser vaidoso. Amar a si mesmo nunca traz solidão. Diferente da vaidade.

Caro que estar só falta um pouco o toque alheio, o olhar alheio, a voz alheia para saber que existimos para alguém como corpo e alma. Coisa que, aliás, um bichinho de estimação, como cachorrinho, sabe fazer e preencher bem nos seus limites.

Mas no dia em que você me abandonar, eu vou traduzir seu gesto como se você me trocasse por algo igual ou melhor. Não me vejo em motivos de abandono: vícios, agressões, traições das mais descabidas, irresponsabilidades angustiantes, falta de cuidado simples, desprezo ou implicância, ou ameaças. Estas coisas do gênero geram o abandono, e o mais rapidamente possível.

Minha tese amorosa é que a vida sentimental entre as pessoas é uma pequena parte de nossas vidas emocionais. A filosofia, a leitura, a arte, esportes são bastantes sólidos em uma eventual separação.

Por isto que se você partir em um momento, não será abandono. Será um patamar acima em que subiu e eu não conseguirei alcançar. Sei que a pessoa olhará lá de cima julgando algumas coisas ruins minhas e até justificará com argumentos inventados na cabeça para o inevitável abandono.

Não vou dar detalhes porque machuca quem já sofreu por causa disto. Agradeço a Deus por Ele sempre ter sido misericordioso comigo já que nunca me faltou inteligência acima, encantamento transbordante, motivação firme, dedicação excessiva e até relativo sucesso profissional em que pudesse ser tudo, menos um ser desprezível. Misericórdia divina.

Não fale então em "se um dia eu o abandonar". Fale mais precisamente "um dia meu mundo pode ficar mais do que o seu e eu posso ter de ir para não me sufocar". E, sinceramente, pegarei as mãos da pessoa, olharei para os olhos dela, beijarei as duas com muito carinho e falerei:

- Você deve ir. Mesmo. A vida tem me ensinado que amores se sobrepõem uns aos outros. Eu fico. Você vai. Amores vêm e vão. Me sinto feliz assim. Espero que cresça no bem que esta sua nova etapa de vida lhe trará. Isto não é abandono. Isto é gratidão. Vai com Deus.

E não mais beijarei. Nem mais falarei nada. Só que meu coração funciona com limites. Uma vez fechado, ficarei apenas com as memórias passadas. E nunca mais com memórias futuras. Reservarei as memórias futuras e presentes para outros corações.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ao Meu Novo Anônimo Amor

As pessoas são sempre pessoas em um momento. E a amamos naquele momento, ou simplesmente não a amamos, sendo bons amigos, ou colegas, ou indiferentes. Eu dei por mim que posso entregar minha alma a um momento de uma pessoa porque eu simplesmente a amei. E nestes momentos, linhas e mais linhas pulsam com facilidade de meus dedinhos no touch-screen do celular e escrevo a ela como verdades eternas minhas palavras e emoções. Oras, o encanto acaba quando aquele momento que eu amava não existe mais. Sobrou o passado. Antes eu procurava apagar aquele passado, destruindo os escritos e seus registros. Aprendi a respeitar o passado. Lá foi, lá ficou, lá estava, lá permanece, lá não volto, lá virou memórias. Meu coração busca no amor o que é meu presente. O meu presente no amor. E é no presente que eu amo que eu quero ficar, e no meu futuro conduzir quem ao meu lado quer permanecer, amando-me e sendo amada por mim. Não me importa tanto as mágoas da ingratidão; nem os rancores das dores que se sente na total solidão inevitável. Escolhas são o que somos. Eu escolho este amor para permanecer comigo, garimpando na simplicidade sonhos reais e possíveis desde que a entrega seja recíproca e, claro, verdadeira. Gosto de declarar meus sentimentos para permanecer fiel o máximo possível, sem exagero da fidelidade moralista. Meu jeito frágil de pedir uma certa compreensão à carne, que é fraca. Ao meu novo anônimo amor que fique e faça uso do meu interior porque na verdade é ele que você o ama. Eu a acolho em minhas palavras e braços com todas as fraquezas e sonhos que já tão brevemente compartilhamos. Sei qual a Graça que nos graceja. Eu creio. Você crê. A fé é o firmamento da Aliança. Ambos cremos. Tenho fé... Tenho amor. Sem segredos. Na verdade da descoberta. Tenho amor e só pretendo alimentá-lo cada vez mais...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Capítulo 1

Capítulo 1

Páginas cansadas de minha vida foram relidas ultimamente. Não quero pensar de modo poético. Nem quero saber do cheiro amarelo que é a impressão que dão alguns livros velhos sem sabedoria e sem experiência. E esta reflexão foi depois do café com pão pela manhã na mesa. Minha mãe na cozinha fazia algo. Provavelmente areava uma panela. Assisti alguns minutos de Bom Dia Brasil. Meus irmãos gêmeos a caminho da faculdade. Fazem engenharia na FEI. Meu pai, aposentado tem poucos dias, dormia um sono merecido depois de tantos anos como vigilante noturno.

Tomei café da manhã. Fui para o ponto de ônibus. Sexta-feira era meu rodízio. Na lanchonete de esquina, cumprimentei de longe o Aílton que é o primo do Caetano que é padrasto de um conhecido de infância, que foi o primeiro menino que brigou com o Cotonete na escola.

Mas as orelhas do Cotone eram grandes. Nem lembro mais do tamanho para comparar com um absurdo colossal qualquer. Arrumamos muitas brigas por elas. Eu as defendia pequenas. O mundo as dizia enormes. O Cotonete era um toco de ninguém e deficiente físico. Eu já era alguém o dobro do tamanho dos meninos, e com três anos a mais. A minha força dava medo aos abusos que infelizmente seriam diários no Cotonete, até quando nos cansamos das brigas e nem mais orelha nem mais o Cotonete perdiam a pose de andar com a cabeça erguida pelos corredores apertados da E. E. Prof. Santos Amaro da Cruz, na zona leste de São Paulo. O bullying cansa na maturidade e na porrada.

Amadurecemos muito rapidamente. Eu amadureci demais com ele. Sei que o respeito pelo Cotonete foram meus músculos e porte físico. Vale bem o dito "se não for respeitado, que seja temido". Me temiam. Passaram a respeitar o Cotonete. Eu já tinha a alma envelhecida com quatorze anos na quinta série. Já se foram vinte anos desde 1995. O Cotonete ficou jovem na imagem das minhas retinas internas e nas poucas fotos de passeios que fizemos. Eu sinto muita falta dele.

Ele era inteligente porque conseguia tirar boas notas nas provas e sabia ler muito bem. Estudar era muito confuso para mim. Eu olhava para as perguntas nas provas e nem tinha ideia de onde viriam as respostas.

Eu olhava tudo ao meu redor, desde criança, e via sem sentido qualquer explicação, e me perdia sempre. Começou a piorar demais com onze anos. A imaginação dentro de minha cabeça, ou excesso de realidade - como me diria no futuro meu neurologista, o pai do Cotonete - não ligavam simultaneamente as diferentes realidades entre a causa e o efeito. Eu me perdia em um ponto e não voltava aos demais. Era angustiante ser chamado de retardado e burro.

Sempre sentei no fundo da sala. O Cotonete na frente. Eu era alto e mais velho. Não fosse a Progressão Automática de 1995 que o Governo milagrosamente implantou, eu continuaria na quinta séria por mais e mais anos até desistir. Na quinta série. Sempre a quinta série.

Na primeira semana de aula de 1995, eu e o Cotonete viramos amigos e parceiros. Era o burro e o inteligente; o forte e o deficiente; o pobre e o rico; o pardo e o branco raquítico. Valeu cada momento entre nós. O Cotonete tão franzino, ainda mais com os defeitos no corpo, e meu jeito mulato encardido de falta de banho pela preguiça. Ambos parecíamos os restos de humanos. O que tinha de humanidade nele, ele ia para cima de quem quer que fosse para brigar já no primeiro dia de aula. Qualquer riso que mexesse em seu brio era pau e porrada. Neste mesmo dia, viramos amigos, mas antes ele me xingou, quando fui ajudá-lo:

- Seu filho da puta! Eu me defendo sozinho.

E me chamou de cabeça de elefante e nariz de tamanduá. Eu repliquei na hora:

- Cala a boca, seu orelhudo! Vai, seu cotonete!

E aí pegou o apelido. A briga parou entre ele e o Cheirinho, que era primo meu, e ele veio para cima de mim.

- Cotonete é a puta da sua mãe, seu viado.

Nem ri, nem me ofendi. E Cotonete ficou. No princípio ele brigava desengonçado por causa do Cotonete e recebia qualquer hematoma. Era sangue ruim o menino. Mais apanhava e nunca batia. Aos poucos o Cotonete soava mais malandro do que Luiz Gabriel De Lucca Anstrand Stanovitch. Depois de um mês era o contrário. A valentia do Cotonete viria ao chamá-lo Luiz Gabriel.

- Meu nome é Cotonete, caralho.

Ele tinha que usar muletas mas se recusava. Arrastava os pés, se equilibrava como podia, tentava acompanhar o ritmo de todos, inclusive no gol. Ninguém queria ir no gol. Ele de luvas tomava o lugar e era sempre o primeiro escolhido. Quase sempre eu no mesmo time. Sou alto e gordo e forte. Ficava atrás. Na zaga. Meu instinto de protegê-lo. A bola passava. O jogador não. Coisa de moleque. E o Cotonete era mesmo perigoso. Não tinha bola perdida e nem chute forte, nem pancada dura e nem dividida covarde. Ele foi parar duas vezes no hospital. Uma porque bateu a cabeça de cheio na trave e apagou. Todo mundo achou que morreu. A outra foi a perna quebrada. A perna mais boa dele, ou menos pior, se partiu em três, consertada pela própria mãe, que era traumatologista. Foi quando teve de ir de cadeira de rodas para a escola. Estou falando de três meses de ano letivo, final de maio de 1995. E, claro, quem virou o empurrador do aleijado fui eu. Pedido de sua mãe. Eu faria de graça. Mas o pai era médico, a mãe médica, muita grana. Aceitei e gastava tudo com o Cotonete mesmo. O cômico foi que antes da mãe me pedir e pagar pelo favor, eu lá na escola já o empurrava assim que ele chegava com a perua. No pátio, perna engessada, comendo o macarrão com frango cozido no prato de plástico azul e uma colher de plástico toda arranhada por diferentes dentes:

- Que porra você veio parar na escola pública, Cotonete?

- Eu quero viver, Babão - era assim que ele me chamava porque ele achava que eu babava quando comia. Quando fiz dez anos me cansei. Vida de aleijado para cá. Vida de aleijado para lá. E deficiente. E motorista particular. E burguesinho cheio de redoma e proteção. E não pode muita coisa. Não pode aquilo. Meus irmãos por parte de pai se desenvolvendo no corpo com a liberdade que a perfeição dava e eu somente nos livros, estudando, notas altas, aluno exemplar e aleijado excluído da porra da vida social. E o médico disse que minha condição é crítica. Meus ossos não acompanham meus orgãos. Antes dos vinte já era. Então eu pensei. Caralho! Que se foda. E falei para a minha mãe que queria estudar na escola pública. Viver livre. Saber o que é isto. Viver.

- Vai morrer tantes dos vinte?

- Vou.

- Falta oito anos.

- Eu sei. Eu até vou corrigir você, Babão. O certo é faltam oito anos. Mas que se foda a gramática toda, que não me vale merda alguma.

- Faltam oito anos, eu me corrigi para me sentir menos burro.

Assim pude entender um pouco mais por que aquele moleque que admitia para mim ter grana foi parar na escola pública. O recreio acabou. Eu o levei para sala. Fomos para sala. Eu o deixei na frente e fui para meu fundo, que era onde eu achava que os burros deveriam ficar para se esconderem mais e não serem vistos. Como não aprendia nada, tanto melhor para mim e valia-me um bom prêmio e consolo emocional a absurda explicação do fundão.

- A sua perua, Cotonete.

- Perua nada, Babão. Vamos de cadeira de rodas até em casa.

O sol estava forte. Final de mês de maio. O dia linda, na verdade.

- A gente tá na Barreira Grande! Até Anália Franco é caminhada.

- Que se foda. Vamos. Você me empurra. Você é gordo e forte. Vai se foder.

- Caralho, Cotonete.

Era subida e descida até a Anália Franco. E o filho da puta foi o caminho todo falando e se mexendo. Bem umas duas horas. Tinha vontade de soltá-lo numa ladeira na avenida e deixar ele se espatifar onde fosse.

- Solta, caralho. Solta esta merda para ver no que vai dar. Solta, Babão.

E o moleque falava com um brilho nos olhos, batendo nas minhas mãos, empolgado.

- Solta esta merda, Babão. Seja homem, cabra!

Faltava coragem. Jamais. O moleque morria. Foi quando eu falei.

- Cacete, Cotonete. Por que não pula de paraquedas? Vai morrer mesmo. Vai ser livre no ar.

E foi um silêncio reflexivo por minutos. De repente ele sussurra alto.

- Mas por que merda eu não pensei nisto até hoje? Que porra. Babão, acelera aí que quero chegar em casa mais rápido e falar para a minha mãe. Que dá hora. Pular de paraquedas. Cacete!

E ele deu para uivar alto com o bico dos lábios, batendo as mãos nas rodas da cadeiras, como um lobo na presa ou pássaro para voar. E não foge de minha cabeça que era uma descida íngrime. O filho da puta quase escapou duas vezes da minha mão. Se fosse naquele momento, certamente ele iria se foder.

- Acalma aí, Cotonete. Acalma aí, cacete. Tá escorregando. Minha mão está escorregando.

- Acelera, Babão. Empurra esta merda logo. Ou solta de uma vez.

Demorou, mas chegamos. Eu cansado demais. Claro que o lugar valeu muito. Um duplex do cacete. Lá no último andar. E a piscina privativa. No elevador o moleque foi gritando.

- Paraquedas, caralho!

Sambava com as mãos, com os lábios, a cabeça e a merda da perna quebrada.

- Você vai pular comigo, Babão. Vai pular comigo.

Nem alimentei esperança. Pés no chão é o que me alimenta. Subir os vinte andares no elevador já me deixou grogue. E a vista de São Paulo da cobertura? Que era aquilo? Na favela, meu barraco dava para o córrego a dois metros de altura. E sem sentimentalismo da favela. Aqui é São Paulo. Favela significa economizar no aluguel.

Estou falando quando eu tinha 14 anos. Hoje saí de lá. Fiz faculdade. Gerente de banco estrangeiro. Meus irmão estudam engenharia. Meu pai aposentado. Minha mãe em casa, deixando as panelas brilhando e a gente vive em uma casa bacana.

A vida do passado e do presente assemelham-se apenas à nossa memória porque fomos nós que a vivemos. No passado era na favela para mim em contraste com aquela cobertura que fazia perder a vista da cidade de São Paulo inteira para o Cotonete. E o enjôo? E a vertigem? E a labirintite?

- Que lugar alto da porra, Cotonete.

E ele chegou eufórico. A empregada abriu a porta. Nem me reconheceu no início. Ele ligou para a mãe e disse que tinha um sonho. Não deu detalhes. Falou que eu estava lá. Disse o nome da favela em que eu morava. E que eu era seu parceiro carne e unha.

- Ele vai pular comigo. É ou não é, Babão? - gritou e eu distraído sentado no sofa da sala, intimidado.

Nem respondi. Mas em menos de vinte minutos aparece a mãe dele, e a primeira coisa que ela fez foi olhar para mim com ar de medo. Duraram segundos. Alto, gordo, amulatado, roupas encardidas. Conversava com Cotonete e olhava para mim. Algumas palavras para ele e outros olhares para mim. Ser favelado ajudou muito na impressão de bandido e mal-elemento que o filho da puta do Cotonete me pintou.

- Babão, foi mal, confessou ele. Só falei que você era da favela porque eu sabia que ela viria para casa na mesma hora. Ser inteligente tem disto. A gente vai manipulando quando quer e der. Mas também ser rico é foda mesmo. Ainda mais o rico que tem a perder e acha que a vida é eterna. Sou rico e vou morrer com o tempo marcado. Que se foda!

Nestas alturas, a gente estava na piscina. Ele meteu saco plástico na perna que para pouco serviu no gesso. Era já umas quatro horas da tarde e o sol batia na cara. Antes a gente comeu lá na mesa. Comida boa. Rica. Verduras como alface lisa, crespa e roxa. Duas opções de carne. Uma assada e galinha caipira ao molho com batata. O purê substituiu o arroz. O feijão era branco. Muito bem temperado tudo. Suco na jarra. Os talheres eram pesados, assim como o prato e o copo comprido. Guardanapo era pano. As cadeiras pareciam poltronas pequenas. Aveludadas. Daria para dormir nelas. Foi só então que a Fátima me reconheceu em silêncio. Quem serviu foi a Fátima. Vizinha minha de barraco. O dela alvenaria. O meu ainda madeirite.

Brincadeira, né? A novela está na vida real, né? E na novela o figurinho e a cenografia deixa tudo limpinho, maquiado, arrumadinho, cheiroso, sem repugnância alguma. Na novela a pobreza tem glamour. Eu só era grande e tinha força para levar o Cotonete para casa e defendê-lo. Quem sabia que ele era rico? Eu não. Só tive compaixão com o indefeso aleijado folgado que não levava desaforo para casa e apanhava mais do que batia. Faria com um cachorro na rua sendo judiado ou com um bêbado humilhado. Minha predisposição a ajudar me levou a um banho de piscina num duplex no Anália Franco.

Supervisionado pelos olhos comunicativos da mãe de Cotonete cujo nome darei mais para frente, eu me sentia feliz se aquilo tudo fosse meu. A vida está na novela e a novela veio à minha vida. Fui servido na mesa pela minha vizinha, tão favelada quanto eu. Mentira. O barraco dela era de cimento. O meu madeira. E quer saber? Ela me serviu com tanto prazer que me senti até rico. Mas rico na alma, que é o estado de felicidade. Fiquei até as sete hora da noite. A mãe do Cotonete não queria que eu conhecesse o pai. Não disse explicitamente por quê. Hoje eu intuo, né? Hoje eu vejo as coisas porque na vida o movimento é simples. Basta a experiência fazer parte da alma que vamos aprendendo aqueles comportamentos. E admito que o Cotonete me falando que eu era da favela para que a mãe viesse correndo para o seu duplex foi demais para mim. Aprendi muito.

- Luiz Gabriel, perguntou no sofá, por que você falou sobre pular de paraquedas agoro há pouco? Que história é esta?

A gente jogava video-game. Nem me vem agora qual jogo era e nem o console. Nunca me aficcionei e nem entendia bem daqueles jogos. Me perdia. Me perturbava. Tinha dores de cabeça e sentia minha mente bagunçada com tantos detalhes ao mesmo tempo. Eu assistia.

- Pera aí, mãe. Estou jogando. Pede um suco de maracujá e uma taça de sorvete para a Fátima para mim.

Ela levantou. Foi à cozinha e preparou sem importunar a empregada, passando a roupa. Trouxe para mim e para ele. De quebra umas bolachas que começavam crocantes e sequinhas e depois derretiam na boca com pequenos pedaços de chocolates. Que maravilha!

- Nossa! Que delícia esta bolacha!

- São cookies, Babão. Para de ser besta. Nunca comeu cookies.

- Nunca comi esta bolacha não.

- São cookies, caralho! Que porra de bolacha!

A mãe ao lado. Nem um olhar de bons modos deu ao Cotonete. E foi a primeira vez que eu o chamei de Cotonete na frente dela.

- Olha o respeito, Cotonete. Sua mãe está aqui.

- Babão, vai se foder você e ela. Você é cheio de falar palavrão a cada minuto, caralho.

- Mas não na frente da minha mãe.

- Vai se foder você e ela, to jogando, e não tira mais a minha atenção.

Tanto a mãe quanto eu ficamos em silêncio. Eu comi mais de cinco daquelas bolachas e tomei dois copos de suco de maracujá. Os sorvetes viraram sopa para beber. Nenhum dos dois tocamos nele e possivelmente foi para o ralo. Uma meia hora depois, a empregada Fátima diz que vai para casa. Terminou a roupa. A mãe, gentil, agradece o cuidado e o dia. Não a beija. Despede-se até amanhã. Por fim, parou o jogo de cansaço. Minha mente doía demais com aquela confusão de imagens que ficavam sem nexo muito rapidamente em mim.

- Mãe, quero pular de paraquedas. Vou morrer mesmo. E a ideia nem foi minha. Foi do Babão.

"Ah, filho da puta!" - pensei nitidamente sem saber o que falar.

- Me explique melhor, pediu a mãe a mim.

O pior foi que acabei me traumatizando pelo sabor dos cookies que tinham sido até então das coisas mais saborosas que havia comido na minha vida acostumada ao gosto de alho, cebola, açucar e sal. Como xinguei mentalmente aquele moleque.

- Pode falar, Babão, insistiu para que eu dissesse.

- Bem dona...

- Cláudia.

- Bem, dona Cláudia. O Cotonete, quero dizer, o Luiz Gabriel...

- Cotonete, caralho. Para de putaria, Babão.

A mãe consentiu sem muita explicação. Babão narrou a loucura que o filho dela teve de pedir para soltar a cadeira de rodas ladeira abaixo na avenida. Só porque eu brinquei falando que dava vontade de soltar de tanto que ele se mexia e eu já cansado. E falei para ele pular de paraquedas se quisesse emoção. Ele ficou em silêncio. Depois empolgado me apressou para chegar logo aqui porque ele queria ligar para você.

- É isto aí, dona Cláudia, disse Cotonete, e falei que ele era favelado porque eu sabia que a senhora largaria tudo para vir correndo para casa.

Ela olhou para mim com outra expressão de espanto só que agora diferente.

- E você mora na favela, Babão.

- Eu já disse que sim, dona Cláudia, insistiu o filho. Vamos marcar, mãe, para pular de paraquedas. Vamos eu, você, o Babão. Sem mais ninguém.

O pai do Cotonete era neurologista e diretor do Hospital e Maternidade São Luiz no Itaim. Na época nem o Itaim Bibi, nem o Itaim Paulista eu conhecia. Se bem que não conhecia nada mais, senão mesmo o caminho do meu barraco à escola e da escola ao meu barraco. Aprendi vir ao duplex do Cotonete por causa dele. Aliás, a partir deste dia ele só vinha de perua para a escola. E voltava comigo. Inclusive um mês depois, quando ele tirou o gesso. Sem mais cadeira de rodas. Éramos passos lentos. Uma amizade com hora marcada. Aliás, passei a viver com hora marcada minha vida toda, e por este motivo resolvi contar tal história. Ganho horas extras para o vazio da eternidade que, na essência, nada quer dizer senão que ser mortal é bem mais excitante do que ser para sempre o que uma hora na vida humana acaba.

- Então você quer mesmo pular de paraquedas, menino?

- Com a certeza de que a morte virá e eu nem ligo para ela.

Neste dia aprendi a analisar os discursos. Eu, que nunca aprendia nada, aprendi algo importante para a minha vida. Não compreendia nada. Tudo passava pela minha cabeça de um jeito tão confuso, caótico, disperso, tive lampejos de compreender algo. As palavras que seguirão certamente não eram as que meu entendimento me deu entre mãe e filho. Cotonete não se defendia ao ser agressivo, direto, falar palavrão, debochar, mandar e até ironizar a mãe chamando-a pelo nome, dona Cláudia, que me incomodava tanto. Ficou claro que havia entre eles uma morte que aconteceria em alguns anos, porque os ossos do menino não acompanhariam na mesma proporção o crescimento dos órgãos internos. A tal da deficiência era estrutural. Fosse ele uma lesma que se danasse os ossos. Mas eles seriam compressores silenciosos. Era um fato. E todo fato exige maturidade. Para mim, era assim que Cotonete queria viver a vida. Um homem consciente para onde iria. O palavrão era seu melhor recado à sua vontade. Uma criança de onze anos com seu tempo bem definido. Isto trouxe a experiência precoce de viver prematura, mas conscientemente. Hoje, distante, vejo este meu primeiro encontro com a mãe dele assim. Uma vontade de ambos serem maduros. Nada de chantagem. Nada de exploração. Nada de abuso. Nada de cinismo. Era o homem que inconscientemente fazia a mãe sofrer o mínimo possível.

O tempo passou e o céu escureceu. Eram oito horas e eu tive de ir embora. A mãe do Cotonete falou que iria me levar. Neguei. Ela me ofereceu um taxi. Nunca havia andado de táxi. Neguei. Falou para eu dormir lá. Neguei. E a cada negativa era:

- Não, senhora. Obrigado.

Não uma única vez a cada pergunta. Eram ao menos duas. "Não, senhora. Obrigado!". Ao final, aceitou e me deixou ir. Antes, porém, de abrir a porta o doutor Carlos Sampaio (vou chamá-lo pelo nome pelo respeito que eu lhe tenho até hoje!) entrou pela porta muito acelerado. Olhou para mim e perguntou para a mulher.

- Quem é o pretinho?

Foi tirando o jaleco. Colocou uma maleta na mesa ao lado da porta. Viu lá o Cotonete, perna engessada, de novo no video-game.

- E este pequeno vagabundo? É somente video-game o dia todo?

Eu achei que fosse mais uma brincadeira até que Cotonete se levantou, sem falar nada. Desligou o aparelho e a televisão. Foi saindo da sala para seu quarto me dando tchau.

- Meu inferno acabou de aparecer, Babão. Vai embora que este homem é o vampiro da humanidade. Vai sugar toda a sua felicidade.

- Cala a boca, seu aleijado. Vai para seu quarto e veja se dá para morrer antes dos vinte.

Neste momento olhei para dona Cláudia. Sim. Todos os dias. E em um ímpeto, ouvimos a porta do quarto bater com tanta força que tremeu a mesa. O pai não deixou por menos. Foi lá na porta, esmurrá-la e condenar a vida medíocre que o filho ajeijado teria. Pouco efeito fez. O som alto da música do quarto do garoto abafava. E em menos de cinco minutos aquilo.

- E quem é este pretinho? - voltou bufando.

- É amigo do Luiz Gabriel.

- Agora além de aleijado é amigo de preto, seu infeliz. Que maldição! Que vida maldita este moleque aleijado me trouxe. Por que não morre logo, infeliz? Por que não morre logo?

- Para com isto, Carlos, berrou dona Cláudia. Para com este inferno. Se for para sempre chegar assim, saia daqui e não volte.

- Um homem não pode ter dez minutos de paz dentro de seu lar. Fica então com este aleijado. Fica com este preto. Fica com este inferno de vida para você que eu vou sair com a minha paz.

Pegou a maleta. Pegou o mesmo jaleco. E bateu a porta tão forte quanto fez o Cotonete. Dona Cláudia encostou a cabeça na parede e colocou-se a chorar com as duas mãos nos olhos. Minutos depois, aparece Cotonete silencioso. Muito menos audaz e menos acelerado como de costume. Aproximou-se da mãe. Abraçou-a pela cintura. Ela o envolveu pelas costas.

- Mãe, eu não vou me matar. Minha vida, vou vivê-la intensamente até quando eu puder. As palavras de meu pai em nada me atingem na alma. Não sou eu quem tem problemas. É ele.

E dias depois Cotonete me narrou que assim que o pai soube que ele nasceria com problemas congênitos, quis o aborto imediatamente. Dona Cláudia em momento algum concordou. Foi até o final. Para piorar ela não pode mais ter filhos porque foi diagnosticada com um câncer de últero inicial, meses depois. Arrancou tudo. Pensaram em separação. Doutor Carlos Sampaio estava no segundo casamento. Tinha dois filhos com a primeira mulher. Porém, descobriu o que era paixão com a segunda, e não conseguia viver sem a Cláudia. Ele a amava doentemente e era correspondido. Mas o amor terminava na condição do único filho deles. Assim, as dores e os desesperos iniciaram com o filho aleijado que morreria cedo e nunca mais filhos teriam, simplificava a mente limitada do neurologista.

- Babão, como é seu nome de verdade?

- Carlos, antecipou Cotonete.

- Ok, Carlos. Está tarde. Vou levar você para casa. Onde você mora?

- Na favela Jardim Primavera.

- Vou levar você para casa. O meu Carlos somente volta amanhã. Como você viu, ele tem um comportamento bem diferente do que você está acostumado.

E para ser sincero não era muito diferente de alguns pais que eu já tinha testemunhado na favela. Nem mesmo um pouco diferente senão o óbvio da porta fechada na cara, da fuga para um quarto de hotel, de um escape entre filho e mãe num belo carro. Fora isto, mais nada.

- E vamos marcar o salto de paraquedas para a semana que vem, ela consentiu dentro carro.

O clima era ainda muito silencioso e tenso. Tive por mim a certeza de que aquilo seria mesmo todos os dias. Meu Deus! Quem suporta? Eu não sabia nome de rua alguma na época. Hoje sei que saímos do prédio do Cotonete. Descemos até a Abel Ferreira. Depois cruzamos mais algumas ruas até um trecho da Av. Sapopemba. Fizemos o contorno e pegamos Av. Barreira Grande para me deixar próximo à favela.

- Quer que eu entre com você, Carlos?

- Pode ir, dona Cláudia. Aqui estou em casa e me sinto seguro. Só mais alguns metros encontro meu barraco.

- Quero dormir aqui com ele, pediu Cotonete.

- Não. Hoje não, Cotonete. Amanhã você dorme.

Dona Cláudia agradeceu este meu início de bom senso que eu nunca imaginara ter e tive e sempre tenho hoje em dia. Despedi e vi o carro grande da mãe do Cotonete virar a esquerda na Av. Barreira Grande para Anália Franco. Cruzei o córrego. Entrei na viela e andei um pouco. Ao lado do barraco de minha mãe, a Fátima com a porta aberta me viu passar.

- Ficou até tarde na casa dos doutores, Carlinhos.

Disse sim com a cabeça.

- Viu que não importa onde haja riqueza, que paz alguma se compra com dinheiro. E saiba, meu filho, que é todo dia. Quando nasce o sol e quando se põe. No café da manhã e na janta. Dona Cláudia me pediu para nunca chegar antes do marido sair e nem sair antes de ele chegar. Ela se cansou de me ver testemunhar aquilo. Todos os dias.

Eu nada disse. Parei para ouvir mas no fundo não queria. Abri a porta de madeira. Meu pai no trabalho de vigilante noturno de obra, meus dois irmãos gêmeos distraídos com uma lata vazia de óleo cada e minha mãe preocupada se eu estava andando com bandidos por chegar aquela hora. Disse que não. E não disse mais nada. Foi a primeira vez que ela me viu silencioso. E somente a lembrei.

- Amanhã um amigo da escola vai dormir aqui em casa.

Ela tomou um susto. Era apenas um barraco que não cabia mais ninguém. Mas não recriminou. Retomou o que fazia na pia, areando a panela de pressão porque gostava de ver o alumínio brilhando feito espelho. E quase sempre conseguia. Ainda hoje o que vejo na minha mãe são panelas sempre brilhando linda e maravilhosamente. Minha mãe tem uma linda alma.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Aquele Momento

Uma reflexão ontem que desenvolvi mentalmente e fiquei de colocar no papel assim que possível.

O fato em si é que devemos aprender e também entender a encarar as pessoas em nossa vida amorosa como momentos. E como momentos, eles podem ser longo, breve, eterno, pouco inexistente, insignificante.

Muitas vezes amamos um pessoa naquele momento da vida dela. Como ela vê o mundo, como ela pensa, como ela age, suas pretensões futuras etc. Nada mais. No entanto, o tempo - porque é o momento contínuo - nos ensina que podemos cometer o erro de continuar amando um momento que não mais existe. E bem possível a dificuldade é esta: a de aprender a enxergar as pessoas que amamos um momento, para saber se ele ainda está lá ou não mais. E tenho razões para isto. Todos temos algum exemplo para isto.

Eu amei, como muitos já amaram aqui, um momento de uma pessoa no ano passado. Foi forte e arrebatador e intenso. Era aquele momento de como ela pensava o mundo e agia que me envolveu totalmente. Eu não gosto de detalhes. Porém, aquele momento hoje já não existe mais. Para mim ela mudou. E muito. Na mudança, para mim, houve perdas. Nossos momentos, então, mudaram. Seria um erro sofrível e inevitável sofrimento presente e futuro insistir em um erro de não enxergar o que não mais existe. Eu a amei naquilo que ela me apresentava como essência naquele momento. Ela mudou. Mudei junto. Eu aprendi...

Ser feliz é poder compartilhar, portanto. Receber e doar. Claro que ao persistir, vamos descobrindo pessoas cujos momentos já estão solidificados, porque sabem o que querem e queremos para sempre este momento compartilhado. Dar e receber.

Mais do que amar 'arrebatadoramente' (coisa boa de adolescente), uma troca e olhar na frente do mar com o pé na areia, um bom diálogo por horas feito minutos, uma troca de toques que se renovam constantemente, tudo isto pode representar um belíssimo momento que buscamos eterno.

Não dá? Mudou? Está esquisito? Perdeu a essência? Houve mudanças e perda? Acaba. Enterra logo. Aquele momento foi bom. Não existe mais, porém. As pessoas mudam. Nós mudamos. E por fim, no fundo, o que importa é este nosso agora para viver, trocar, amar quem nos ama. Porque do contrário é viver no passado e no presente onde podemos arrumar tantas desculpas para sofrimentos que se resumem a um único: aquele momento já era há muito tempo...